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Mostrando postagens de 2016

Íncubos

O Pesadelo (1781) de Johann Heinrich Füssli. Ela acorda e não consegue se mover. Ainda está escuro e os seus olhos vão de um lado ao outro perscrutando o quarto. No breu do recinto seus olhos são as únicas fontes de luz. O casaco que colocou no cabideiro ontem à noite antes de se deitar desenha uma silhueta. A touca no topo intensifica a ilusão de alguém a observando. Fecha os olhos para tentar desanuviar a mente e a imaginação, descansar da realidade, mas não consegue relaxar. Ao abri-los novamente o vulto do cabideiro parece que tomou formas femininas. Duas pequenas bolas vermelhas se acendem no alto da silhueta negra iluminando o cômodo. Ela então passa a enxergar nitidamente o que parece ser uma mulher pequena e raquítica com cara de gavião. A sua aparência é imunda e assustadora. Seus olhos de fogo lhe fitam intensamente. Abre a bocarra cheia de dentes verdes que exala um cheiro de podridão pelo quarto e solta uma gargalhada horripilante. Ela fecha os olhos com força deseja...

Passeio

Chevette preto. Versão SL. Um ponto quatro. Rodas cromadas. Vidros sufilmados.  Passa a cento e vinte quilômetros por hora na Avenida Belmira Marin. O limite na avenida periférica é de sessenta. O clássico de 76 some bairro adentro. São duas e quinze da manhã. Milo, Cuca e Joey conversam na frente da casa de Macau. Contam vantagem do último rolê entre risadas e a fumaça dos cigarros e baseados. Mas se assustam quando um carro estranho na quebrada estaciona na frente deles. Imediatamente os vidros descem e a luz interna do carro acende. Não há ninguém no veículo. Ficam sinistramente cabreiros. O estofado de couro dos bancos fica mais brilhoso sob a luz branca do teto. Os amigos temerosos se levantam para entrar em casa quando o rádio do carro liga sozinho: “Vamo andar pelas ruas de São Paulo, por entre os carros de São Paulo, meu amor, vamos andar e passear” *. Eles se entreolham se perguntando se isso seria um convite. ...

Movimento

Já fazia um mês que meu tio morava com a gente. Ainda não entendi o que aconteceu. Um dia ele chegou aqui com uma mala e uma mochila. E o seu velho violão. Pai o acolheu de bom grado. Colocamos o sofá da sala no meu quarto. Abri mão da minha cama, pois já dormia mais no sofá para assistir televisão do que nela, já não era minha mesmo. Toda noite conversávamos antes de pegarmos no sono. As suas histórias sobre a infância e o Nordeste substituíram os programas. Me falava da minha vó Ruth que infelizmente não conheci. Conheci mas muito criança e esqueci. Em todas as histórias que a família conta a vejo como uma mulher de personalidade forte e ao mesmo tempo amável. Queria ter guardado alguma lembrança dela, podia ser a mais simples de todas, um olhar, um gesto ou um sorriso. Foi dela que meu tio pegou o gosto pela música. Ela que o ensinou a ler e quem o incentivou a tocar violão. Todas as noites ela cantava na cozinha e ele sentado no chão acompanhava-a com seu violão. A última vez que ...

Montes

Um monte de casa, sobrado e barraco Um monte de monte de entulho espalhado Um monte de fios que se cruzam e entrecruzam com um monte de rabiolas e pipas enganchados Um monte de pessoas largadas nas margens Da Cidade Sociedade Vida      Periferia: desconhecida, esquecida, pré-concebida, perdida entre interesses econômico-políticos entre leis sovinas e mesquinhas de poderosos que perpetuam o poder  em nome de Deus e da tal Meritocracia  “Leis! Sabe-se o que elas são e o que elas valem. Teias de aranha para os poderosos e os ricos, cadeias que arma alguma teria meios de romper para os pequenos e os pobres, rede de pesca entre as mãos do governo”. Somos as moscas e os peixes de Proudhon Nojentos e asquerosos Parasitas e pratos-do-dia Sugando o sangue azul e sufocando-os com nossas espinhas Ah delírio alucinante mortalmente peçonhento! A Grande Aranha Octópode nos drogou com seu veneno  e...

Antes de Dormir

Em close um cinzeiro. Quatro bitucas amontoadas sobre as cinzas. A fumaça de um cigarro pela metade repousado no cinzeiro dança se contorcendo eroticamente. Ele pega-o e coloca-o na boca.  Em close uma boca com os lábios contraídos a tragar o cigarro. A tesoura dos seus dedos o devolve ao cinzeiro. A fumaça é expelida pelo seu nariz e boca. O cheiro da fumaça se incrusta na sua barba hirsuta. Em close seus dedos se movem pelas letras do teclado de seu computador. Dedos finos e delgados a ir pra lá e pra cá, digitando as teclas que formam certas palavras, que não são outras e nem aquelas, mas essas. Em close suas orelhas cabeludas. O cabelo encaracolado esconde a parte superior delas. São grandes e com lóbulos proeminentes. Elas captam o som que sai das caixinhas do computador. A música lhe fisga por completo e ele desiste de escrever. A tela preta banhada com as cores da música o esconde. Prefere ficar no escuro, só fumando e sentindo, enquanto seus pensamentos...

Que se danem

Elias admira Valdir. Valdir é obreiro na casa do senhor, ora, canta, prega, profetiza, é um vaso nas mãos de Deus. A opinião na congregação é unânime: ele é usado. Dessa admiração nasce a amizade dos dois, apesar da diferença de idade, Elias tem doze e Valdir vinte e dois, o elo essencial para essa relação já está posto.  Um dia Valdir convida Elias para sua casa. Conversam sobre sexo. Valdir revela o seu desejo por um boquete. Elias estranha a conversa e ao mesmo tempo se sente privilegiado. Valdir é sempre tão sério e correto com todos, se com ele se sente a vontade para esses arroubos confessionais é porque o considera um amigo de verdade. Em outra visita Elias encontra William conversado com Valdir. Sente ciúme. Valdir é seu amigo. Eles possuem uma relação especial. Valdir e William comem pipoca enquanto assistem a um filme. Ben Hur. Elias pega um lugar no sofá da sala e os acompanha. Não gosta do filme e resolve ir embora. Se despede dos dois que permanecem assist...

Solidão A Dois

Um sad rock belorizontino reverbera no pequeno cubículo. Ele fuma deitado no colo dela. Ela lê enquanto acaricia os cabelos dele. O som alto das guitarras esconde o barulho da chuva que acaba com o mundo lá fora. A tempestade assopra as paredes que envolvem o pequeno mundo pueril deles, os protegendo das intempéries, indiferentes a realidade externa não percebem a implosão de dentro pra fora, da solidão que corrói e os ausenta mesmo estando corporalmente presentes. Antes dividir a solidão do que sufocar-se sozinho no vazio gélido insuportável da alma. De repente a temperatura no quarto cai, o cômodo parece mais frio que os ventos tempestuosos. Vão juntos para debaixo dos cobertores, adormecem dividindo a temperatura dos seus corpos, um calor que relaxa os músculos e as pálpebras num sono irresistível e profundo. Sonham o mesmo sonho onde polos extremos são ligados por uma linha tênue que ora os aproxima e ora os repele num movimento de vem e vai eterno e cíclico que é interrompido pel...

Esteira

Ela desce do bus. Já é uma hora da manhã. A Avenida Belmira Marin está praticamente deserta. As vielas estreitas e insalubres do Jardim Prainha são mais inóspitas ainda. Teve o azar de não ter ninguém no ônibus que também morasse por esses lados. Ela desce a Estrada da Ligação sozinha. Começa numa velocidade baixa.  Da Avenida até a sua casa são aproximadamente mil metros e meio. Desce num passo constante. Passa pelo primeiro e sinistro trecho da estrada com as torres de alta tensão e seus barracões. Ela não olha para os lados com medo de ver alguém na escuridão. Bota Arctic Monkeys nos fones de ouvido para tentar relaxar. Brianstorm ajuda a aumentar o ritmo. Já está numa velocidade elevada. Passo firme e respiração ofegante. A vendinha protegida por grades sempre reúne um grupinho de rapazes. Passa sentindo que está sendo acompanhada por olhares.  Passando pela igreja católica numa velocidade maior é surpreendida por um homem que sai da rua quinze ou doze,...

Cultura É Passado

Jards contempla os pôsteres na entrada do PlayArte no shopping Center 3. Ele tenta se decidir por um dos filmes junto com seu filho Daniel de dezesseis anos. Mas logo desanima do programa, o filho percebe a mudança no seu semblante. Que foi pai? Me bateu um desânimo. Não sei se quero mais assistir. Tudo bem. Jards melancólico e nostálgico completa. Sabe filho, tinha uma época que pelo menos um desses pôsteres era brasileiro. O que aconteceu? Acabaram com a Cultura.

Mais uma noite fria de chuva qualquer

Pedro toma um café no balcão de um bar. Na TV alguma notícia sobre o mundo. Ele assiste indiferente. Nas mesas de fora observa duas amigas que conversam. Elas já estão na terceira cerveja. Sorriem à toa. Lindas. A breja, a conversa, as blusas e os cachecóis as aquecem do frio. Uma garoa começa a cair. A intensidade aumenta e ela se transforma numa chuva. As garotas e outros clientes entram no bar. Um cara de boné e mochila preta se refugia no toldo do estabelecimento. Ele consulta o celular. Nas mesas lá no fundo um casal com a filha parece se divertir. O pai é enorme, a mãe é um pouco menor e a filha é pequenina. Os olhos dos pais brilham a observar a garotinha que se diverte enquanto come. Pedro paga o café e vai para o toldo. Acende um cigarro. Os carros que passam com seus faróis revelam as gotas que estão prestes a molhar o asfalto. Os postes iluminam a noite chuvosa. Pedro joga sua bituca no chão, cobre a cabeça com a toca da blusa e caminha na chuva com suas mãos no bolso. ...

Discurso Conservador Brasileiro

Hey arranje um emprego, mude essa roupa, corte o cabelo, tire a barba, não fume cigarro, muito menos maconha, não leia certos livros, compre uma bíblia, pare com essa música, coma essa vadia, bata nela, coma outras, bata nelas também, ande direito, seja homem, compre uma arma, os americanos são fodas, índio é beberrão, preto é ladrão, pobre é vagabundo, bichas são doentes, esquerdistas são terroristas, nordestinos são burros, professores reclamam demais, pt nunca mais, ditadura sim, vá para igreja, não pise num terreiro, deus é bom, o diabo é mal, amo meu país, ganhe dinheiro, se case e tenha filhos, ensine o ódio, ensine o preconceito, ensine o racismo, ensine o machismo, ensine a homofobia, ensine a ignorância, ensine o horror, ensine o terror, ensine o medo, ensine o fascismo, ensine o ódio. 

Fofis

Wesley corre desesperado para casa. Envergando o corpo pra frente e contraindo as nádegas para segurar a vontade. Parece que quanto mais próximo mais ela aumenta. Chega esbaforido em casa e se apressa para o banheiro. Quase que não tem tempo de abaixar as calças. Haaaa. Sente-se aliviado. Que aperto. Ao olhar ao lado não vê o papel higiênico. Nem no armário da pia. Putz. Ô BIIIIIIAAAAH! BIIIIAAH! Bia grita. OIEE! Que foi?! Tá doido?! Meu, compra um papel ali no Juarez. Vim numa carreira só e não percebi que tinha acabado. Você quer dizer caganeira só, né?! Wesley se irrita. Anda logo menina. Tá bom, tá bom. No Juarez Bia decide qual marca de papel levar para casa. A que sua mãe sempre compra aparentemente acabou. Distraída olhando para a parte de cima da prateleira onde os papéis ficam ela tromba com Emily. Oi Em, tudo bem? Tudo sim e você? Também estou bem. E aí, o que procura? Vim comprar aquele papel de dupla camada, sabe? Fofinho e tal. Ah, sei, o Fofis, né? Isso. O que tem uns ur...

Manhã Escaldante

Nanda espera Leo na mesa da cozinha. Bebe um café quente vestida com seu roupão vermelho. Desvia o olhar das mãos que apertam a caneca para o relógio na parede. O ponteiro menor está no número oito e o maior no dez. Os olhos fundos revelam mais do que seu cansaço, são reflexos da angústia e frustração. Ainda não pregou as pálpebras e o café ajuda na tarefa de deixá-las abertas.  Ouve as chaves na fechadura da porta. Apreensiva acompanha os passos que vão se aproximando. Leo entra na cozinha. Encara-a indiferente enquanto Nanda o evita olhando para baixo, para seus dedos delgados que nervosos apertam a caneca com mais intensidade. Ele pega a garrafa de café que está em cima da mesa, na pia pega um copo que seca no escorredor. Com o café fumegante sai mudo assim como entrou. Ela ouve o ranger do couro do sofá e as vozes da televisão. Levanta-se e no quarto tira o roupão. Se olha no espelho. Ganhou uns pneuzinhos na cintura, mas continua maravilhosa. Toma um banho e escol...

Assalto

Susan se sente impotente. Impotente diante da vida. Ela ainda se lembra de se sentir perdida com o fim do ensino médio, enquanto seus amigos e a maioria dos seus colegas de classe já tinham tomado resoluções em relação à faculdade, cursos e trabalhos, ela ainda tentava analisar todas as suas possibilidades. Durante essa fase o que lhe dava mais ódio ainda, mais do que não saber o que fazer, eram os planos de terceiros sobre o que ela não tinha o menor interesse, apesar de não saber o que queria, ela definitivamente sabia o que não queria, um emprego chato, um namorado para afirmar sua sexualidade, um carro para ficar parada no trânsito, uma faculdade sinônimo de empregabilidade, estabilidade e grana. Essas exigências sociais lhe aborreciam. Quando enfim ingressou na faculdade e pôs a cara nos livros elas pararam um pouco. Só não sabia que elas voltariam com mais peso depois de quatro anos de Ciências Sociais e que ela se sentiria mais perdida ainda. Como a impotência de um assalto...

Sem o chumbo, só com o amor

Maira de 63 anos está sentada no seu sofá sóbrio. Seu vestido é âmbar e suas unhas são pretas. Seu cabelo curto e grisalho, seu óculos elegante no colo e seu batom discreto destoam da convulsão de lágrimas que irrompem de seus olhos. Elas são quentes e não é devido à iluminação montada em sua sala. Anitta pensa em desligar a câmera. Desculpa. Tudo bem. Não, desculpa. Vamo parar... Não, não. Podemos continuar. Certeza? Sim. Então, tá... Eae galera, tudo certo? Rodando. Tudo bem... Qualquer coisa é só dizer, tá? Maira concorda com a cabeça afirmativamente. Certo... Então, qual foi à última vez que você viu o Aylton? Foi em 71. Ele me levou da faculdade para casa. Disse que ia numa reunião. Vi sua silhueta desaparecer no contraluz do fim de tarde. Era nossa despedida e eu não sabia. Lembro da calça sarja ocre, do jaco marrom por cima da camisa social branca, do maço de cigarro no bolso da camisa, dos sapatos pretos, do cabelo castanho p...

Sexta de Noite

A gata ronrona no meu colo enquanto você provavelmente deve estar ronronando na sua cama. O som ronrona baixinho com suas distorções e ruídos. A ceva ronrona enquanto rola pela minha garganta. Numa sexta de noite. Numa sexta de noite. Escrevo pra você numa sexta de noite. Não me pergunte à hora exata e nem a data ou o mês ou até mesmo o ano. Foda-se. Escrevo-te no presente, pois assim parece que estou a falar com você nesse instante, assim as palavras passam a impressão de estarem rolando agora, naturalmente, numa espécie de prosa espontânea misturado com fluxo de consciência ou de pensamento, digressões, confusões, distorções, invenções. Você não percebeu, mas fiquei um tempo sem escrever só ouvindo as reverberações da voz da cantora e durante essa audição dei alguns goles na minha sétima, oitava breja, sei lá, já perdi as contas, pode ser que esteja exagerando. As guitarras parecem que estão numa espécie de vórtice, um vórtice onde eu me deixo levar, vou deslizando, degringolando, n...

Playground

Foto: Paulo Sommer Começo de tarde. Carlos e Thiago estão cansados de caminhar e sentam nos bancos do Parque Trianon. Em frente ao banco tem um playground infantil. Carlos fuma mais um de seus cigarros. Enquanto isso Thiago observa a cena que desenrola na frente de seus olhos. Pais vão embora com seus filhos. Outros chegam com seus pequenos. Uns somente observam. Outros interagem na brincadeira. Um pai alto e branco, louro, corte de cabelo quadrado escora-se nas barras de um brinquedo para mexer no seu celular. Sisudo. Seus olhos alternam entre o filho e o celular. Às vezes demoram-se mais no celular. Quando fala com o filho é para repreendê-lo. Thiago acha a cena curiosa. Uma mãe que empurrava a filha no balanço agora está sentada no banco. De lá observa a menina que se balança pra frente e pra trás. Também alterna entre a filha e o celular. O marido parece que não está com ela. Pode estar falando com ele. Pode nem ter marido. É mãe solteira. E assim fala com o namorado, ...

Corrijo-me

Minha tia tinha um cachorro que parecia gente. O nome dele era Scorpion. O nome era em homenagem a banda alemã, sim, meus tios são metaleiros, não, não era uma homenagem ao personagem do gamer Mortal Kombat. De muitas formas um cachorro parece uma criança, tem que se estar atento a qualquer variação de seu comportamento, hiperatividade, tranquilidade, fugas para debaixo de camas e mesas, choros, uivos. Às vezes não dá pra saber o que eles querem, comida, água, carinho, rua, proteção, e assim usamos o método que a maioria dos pais usam com os filhos quando pequenos e não conseguem se comunicar, e quando já grandes e não querem se comunicar, ou seja, tentativa e erro, na dúvida, melhor fazer tudo o que você acha que seu cãozinho ou filho talvez queiram. Meus tios acostumaram Scorpion com comida, feijão, arroz, carne, frango, peixe (sem espinhas, evidentemente), aqueles beliscos no almoço e na janta que deveriam ser só exceções acabaram se transformando em regra. Assim o bicho só com...

Lobo Solitário

Enzo caminha para a escola. Durante o trajeto passa por um bazar escolar pequeno, mas bem arrumado, prateleiras e objetos bem distribuídos pelo espaço, parece ser um local bem arejado e limpo. Um lugar que dá vontade de entrar. Nos fundos um balcão de vidro, sobre ele um computador e atrás do balcão um cara simples numa cadeira assistindo algo no PC. Ele aparenta ter uns vinte anos, talvez beirando os trinta. Barba por fazer e de boné. Fones no ouvido. Desligado do mundo. O professor passou um daqueles trabalhos horríveis para turma. Eles precisam desenhar um átomo, fazer uma espécie de cartaz para colar na sala. Enzo vai até o bazar que sempre lhe convida a entrar pra comprar uma cartolina. As cartolinas, os crepons e todos esses tipos de papéis que são desperdício de árvores estão enrolados e dentro de pequenas caixas de papelão que ficam numa prateleira atrás do balcão. Enzo entra e observa o lugar, o cheiro do estabelecimento é agradável, ele passa pelas prateleiras cheias de ...

Festa de um homem só

Que ressaca da porra. Vomitei no cobertor. Que nojo. Preciso de um banho, mas não consigo me levantar. Na real, não consigo nem se quer lembrar do que aconteceu ontem. Eu saí? Estava com alguém? Por que estou nu? Será que transei? Foi com uma mina ou com um cara? Merda. Meu estômago dói, meus olhos ardem, sinto-me quebrado. O chão do quarto está cheio de latinhas vazias, cinzas e guimbas de cigarro. Lembro de música, tinha uma galera com uns violões e diversos instrumentos de percussão, batendo palmas, cantando inspirados, bebendo com aqueles copos vermelhos, umas minas lindas com seus vestidos e shorts curtos, umas sem sutiã, cabelos soltos e amarrados, outros lindamente armados, franjas, bocas vermelhas, grandes e pequenas, pareciam pin-ups, outras mais moderninhas, uns caras gatos também, estilo lenhadores, outros pareciam ter saído agora da era rockabilly com seus topetes e roupas engomadas, olhos calmos e penetrantes, com barba e sem, o pomo de Adão saliente. Acho que rolou Beatl...

Por Favor

Em flor de lótus ele sibila a palavra sagrada Om em busca do nirvana para pôr um fim ao samsara e extinguir o seu carma. No confessionário sentindo-se culpado ele segreda os pecados ao padre e segue ao genuflexório para pagar por eles com um rosário e quinze Ave-Marias. De joelhos no chão frio ele pede perdão a Deus com medo do inferno enquanto barganha a sua salvação dando dez por cento do seu salário para o pastor. Na mesa de um bar com amigos eu celebro a vida e os seus mistérios. Não acredito e não quero que nada e nem ninguém me alivie da culpa.  De duas uma, ou levarei ela para o túmulo ou o tempo acabará com a sua importância. Não há remédio e nem paliativo. Não quero pureza, não quero perdão, não quero salvação, eu quero ser humano, e por ser humano eu quero viver por completo, em plenitude com tudo que é inato a minha condição e natureza. E por favor, não me acabem com o mistério. Há quem goste de dar sentido pra tudo, já eu gosto das brechas, ...

Eu quero um jazz

Eu quero um jazz. Mas não qualquer jazz. Quero um jazz livre, solto, desenfreado, arrebatador, virtuoso, catártico, negro e africano. Os brancos transformaram a música erudita em mero formalismo rígido e sem vida, coube aos negros devolvê-la a pulsação através da criação e do improviso. Além de aprisionar a música, os brancos também aprisionaram os negros com seus grilhões visíveis e invisíveis, mas apesar disso, eles não conseguiram aprisionar a alma e o espírito, partes que eram incapazes de ver, além da cor da pele e dos traços físicos. O jazz nasce do confronto e não do encontro com tradições europeias, assim como a liberdade, a cidadania e a igualdade nasceram também pelo confronto com a segregação e o preconceito. Jazz é o confronto com a estrutura, com a melodia, com a tonalidade, com a concepção rítmica ou métrica, com a unidade, com a sociedade e com a posição que esta reserva para os seus criadores. O jazz é resistência, é contracultura, é em sua essência, negro. Das wor...

Bang

Márcio e Moacir são irmãos. O costume da família de dar nomes aos filhos com a mesma letra poderia fazer dos dois mais unidos. Mas sempre houve uma rivalidade entre eles. Por vezes escancarada, por vezes velada, mas ela era latente mesmo quando tácita. Além do M eles sabiam que por baixo das suas peles corria o mesmo sangue. Compartilhavam dos genes dos seus pais. Mas assim como a relação entre os genes e o meio resulta em traços físicos diferentes daqueles que são herdados geneticamente, a interação dos dois com o meio onde estavam inseridos gerou diferenças de pensamento e comportamento. Com o fim do Ensino Médio Márcio ingressou em Artes Cênicas na USP, enquanto isso Moacir dava duro como motoboy. Revolta-se com essa do irmão de estudar teatro. Isso não botava comida na mesa. Não enche barriga. Pra Moacir era coisa de veado e vagabundo. A sorte era que o irmão se virava sozinho. Não era um estorvo para os pais. Moacir ainda morava com os pais, mas ajudava nas despesas. Márcio di...