Enzo caminha para a escola. Durante o trajeto passa por um bazar escolar pequeno, mas bem arrumado, prateleiras e objetos bem distribuídos pelo espaço, parece ser um local bem arejado e limpo. Um lugar que dá vontade de entrar. Nos fundos um balcão de vidro, sobre ele um computador e atrás do balcão um cara simples numa cadeira assistindo algo no PC. Ele aparenta ter uns vinte anos, talvez beirando os trinta. Barba por fazer e de boné. Fones no ouvido. Desligado do mundo.
O professor passou um daqueles trabalhos horríveis para turma. Eles precisam desenhar um átomo, fazer uma espécie de cartaz para colar na sala. Enzo vai até o bazar que sempre lhe convida a entrar pra comprar uma cartolina. As cartolinas, os crepons e todos esses tipos de papéis que são desperdício de árvores estão enrolados e dentro de pequenas caixas de papelão que ficam numa prateleira atrás do balcão. Enzo entra e observa o lugar, o cheiro do estabelecimento é agradável, ele passa pelas prateleiras cheias de cadernos, de brochura, com arame, capa dura, capa mole, costurado, pequeno, grande, com diversas cores, azul, vermelho, verde, desenhos e etc. Na loja rola um college rock bem gostosinho. Mas parece que não tem ninguém. Ele vai até o balcão, no canto esquerdo tem uma porta que a coluna esconde, a porta está aberta. Fica um tempo parado esperando. Bate palmas. O cara aparece na porta mexendo as orelhas. Pois não? Fala com a boca cheia. Ah, oi. Eu queria uma cartolina. O cara concorda com cabeça e pega uma caixa lá no alto. Que cor você gostaria? Diz engolindo a comida. Branca mesmo. Aqui ó. É quanto? Um real. Valeu ae. Brigado você. E assim o funcionário volta a desaparecer pela porta. Já que sua casa fica acoplada ao estabelecimento é óbvio que ele não é um simples funcionário e sim o dono, pensa Enzo.
Os dias seguem com seu tédio. A escola segue com suas tarefas enfadonhas. E Enzo segue passando em frente àquele bazar por acaso. Numa certa tarde passeando com seu cachorro encontra as portas fechadas. Na parede um cartaz, cartaz não, uma folha de sulfite A4, letras garrafais impressas com tinta preta: PROCURA-SE FUNCIONÁRIO. Ele arranca a folha e a usa para limpar o cocô do seu cachorro.
No dia seguinte Enzo vai até o bazar e encontra o dono com uma prancheta, passando pelas prateleiras e fazendo anotações. Deve estar tomando nota da mercadoria que está acabando. Hoje ele não está só. Um cara gordinho está sentando na cadeira atrás do balcão. Putz, ele já contratou alguém, pensa Enzo. Quando estava dando meia volta para ir embora, ele ouve o gordinho que se levantou e foi até o dono com uma folha em mãos. Pronto. Cola e bora ver se arrancam de novo. O cara gordinho solta uma risada, como se estivesse rindo da própria piada, como se o que acabou de dizer fosse ao menos engraçado. O dono do bazar o olha de maneira desdenhosa, desdém que a aba do boné esconde. Cê é sem graça, hein Bernardo? O olhar de Bernardo para o amigo muda e ele esboça um sorrisinho. Tô zuando, carai. Sabia que tu ia falar algo. Enzo se aproxima e interrompe o confabular. Pois não? Diz Bernardo. Oi, fiquei sabendo que você está contratando alguém. Ah, então foi você que arrancou minha folha? Enzo desconfiado disfarça... Folha? Bernardo desconversa, estou contratando sim. Tá interessado? Sim. Tu tem quantos anos? Tenho dezoito. Já terminou a escola? Não, estou no último ano, mas estudo de manhã, no Juscelino, aquela escola bem ali. Ah sim, sei. Então cara, é o seguinte. Tu estudar não é um problema, preciso de alguém para o horário da tarde. A partir das 16 para ficar até às 20 horas só. Ah, suave. Pois é, só que como é meio período eu não posso te pagar muito... Não, por mim é de boa, o que vir já ajuda. Firmeza então. Me passa teu número aí... 5931... Anotado. Beleza. Então mais tarde eu te ligo, fechou? Fechou. Eles apertam as mãos e se despedem. Ao se afastar Enzo ainda os ouve. E aí Nem, são essas coisas aqui só, ó? Tu compra lá pra mim? Vou B., de boa. Falou, valeu ae.
Ficou acertado de Enzo entrar todo dia às quatro horas da tarde. São só quatro horas de serviço, mas ele ainda pega o movimento dos alunos que estudam de tarde que aproveitam a volta para casa pra comprar algum material ou do pessoal da noite que ainda passa por lá atrás de coisas básicas, lápis, borracha, caneta. Bernardo é um cara tranquilo e meio doido. Ele confia o bazar e a sua casa a Enzo sem nem ao menos conhecê-lo muito bem. Eles só trocam banalidades. Enzo chega e Bernardo já sai para a faculdade. Até agora Enzo não sabe o que ele estuda. Às oito horas ele fecha tudo, a porta do bazar que dá acesso a casa, o portão do estabelecimento e entrega a chave na casa de Nem, primo de Bernardo que mora na rua de atrás, ao que parece ele dá uma força ao primo de vez em quando. Enzooo! Foi suave hoje? Tranquilo. Eae, quer entrar? Tomar uma breja? Não, preciso ir. Deixa pra próxima. Suave. Falou ae, abraço. Abraço, boa noite.
Enzo está entediado. Hoje está bem parado. Ele já varreu o chão, tirou pó das prateleiras, arrumou as mercadorias, mas agora não encontra mais nada pra fazer. Permite-se não fazer nada e vai até o PC. Bernardo disse que podia mexer nele de boa, se quisesse ver vídeos tinha até internet. Enzo lembra-se daquele college rock que ouviu naquela vez. Abre a biblioteca e dá uma vasculhada no que tem pra ouvir. Ele se impressiona. O cara, tem uma porrada de músicas. Tem de tudo, jazz, indie, rock, rap, mpb, samba, eletrônica, clássica. Tem um monte de banda que ele nunca ouviu falar. Encontra Reckoning do R.E.M. Sabia que tinha um college rock dá hora aqui. Ele viaja no som límpido e agradável da guitarra de Peter Buck e nos vacais tranquilos de Michael Stipe. É tudo muito coeso e harmonioso, a bateria de Bill Berry e o baixo de Mike Mills deixam tudo sobre controle. A hora passa que ele nem vê. Dá oito horas, ele tranca tudo e leva as chaves para Nem com um sorriso no rosto.
Enzo transforma a audição do acervo musical de Bernardo em um momento sagrado do dia. Toda noite é uma banda nova pra se ouvir e se conhecer e não só uma música, o cara tem a discografia completa de um monte de gente. Um dia desses ouviu uns caras que lembravam o R.E.M. só que mais enérgicos e pirados, Pavement se não estiver enganado... Cada dia é uma descoberta. Nunca tinha ouvido falar de My Blood Valentine, que apesar da barulheira de distorções e ruídos possui uma afável melancolia e melodias hipnotizantes. De tempos em tempos ele vai variando os sons no celular, o espaço é pouco. Mas nem tudo soa agradável. Ele não consegue ouvir os psicodélicos nem fudendo. Tudo soa enjoativo, cansativo e enfadonho. Mas hoje ele saiu meio sombrio do trabalho. Parou pra ouvir uns folks, Leonard Cohen e Joni Mitchell. Acendeu até um cigarro voltando pra casa. Oxe, tu fuma? De vez em quando. Nem ri. Firmeza. Falou mano, até amanhã. Até.
Eae B., beleza? De boa. E aí, quer uma pipoca? Opa. Pera ae que eu vou fazer. Bernardo entra e Enzo fica por ali no bazar. Tem uns cadernos empacotados pra arrumar na prateleira. O cheiro da manteiga escapa da cozinha para a loja. Eae, tá pronto. Já vou, deixa eu terminar aqui. Só arruma esses aí, o resto eu arrumo amanhã. Firmeza. E aí, não tem facu hoje? Não, a semana de provas acabou, fim de semestre, já era. Mas o que tu estuda mesmo? Letras. Letras? É, estranho né? Um pouco. Enzo termina de arrumar os cadernos e vai até Bernardo. Enche a palma da mão com a pipoca da bacia. E a escola? Tá de boa, doido pra terminar já. Calma, já já acaba. Falta pouco, né? Sim. Já sabe que facu cê quer? Que nada... Suave, relaxa. A galera se desespera muito. O barulho da pipoca sendo triturada pelos dentes permanece pelos segundos que os dois ficam calados. Quer ouvir um som? Põe aí. Pera aí... Já ouviu Wild Nothing? Não, é bom? Me diga você e Bernardo dá o play em Gemini. As guitarras e os sintetizadores de Live In Dream vêm crescendo aos poucos. Dá hora, curto sons assim. Dá pra viajar, né? É. Tu costuma ouvir o quê? R.E.M. Ouço pra caralho. Principalmente os primeiros discos. Porra, também curto mais os primeiros. Já ouviu Real Estate? Não. Pera ae que tu vai curtir. Enzo ouve acordes de guitarras límpidos e suaves, uma segunda guitarra com um efeito etéreo entra, logo mais a bateria e o baixo preciso e os vocais tranquilos de Martin. Puta mano, muito louco. Bernardo ri. Sabia que tu ia curtir. Esses caras são dá hora mesmo. Posso passar pro celular? À vontade. Viu, sábado vamo fazer uma festinha aqui em casa. Cola ae, quiser trazer amigos também, de boa. Opa, pode deixar. Ó agora, ó agora. Matthew entra com seu solo delicado e melódico. Enzo puro sentimento solta, foda.
A galera foi chegando logo após fecharem a loja. O pequeno portão ao lado do portão de enrolar dá acesso aos humildes aposentos do chefe. A casa de Bernardo é simples, são três cômodos, uma sala, uma cozinha e um quarto. Poucas pessoas estão reunidas ali, umas doze no máximo. No sofá Gisele, Thiago e Miriam trocam ideia enquanto acariciam o cachorro que Tomaz trouxe. Enzo não sabe a raça do bicho, parece ser um labrador ou um golden, na verdade ele não sabe qual a razão de trazerem um cachorro. Nem já está meio bêbado, ele anda bebendo desde as três, quatro horas, ele troca ideia com Murilo, sujeito pequeno e atarracado. Cássio é o cara que quer ver todo mundo bêbado, uma hora ou outra passa com umas bebidas loucas, agora é a vez do tal disco voador, pitu com limão, açúcar e canela. E a negada vai virando e fazendo careta. Enzo já bebeu uma três, sem contar as latinhas de cerveja. Ele conversa com Tomaz, Bernardo, Leandro e Gabriela. Pela conversa Enzo entende que eles formavam uma banda. Por alguma razão a galera vive perguntando de uma tal de Ali pro Bernardo e ele sempre desconversa. Pra completar a trupe Luíza chega com uma garrafa de José Cuervo, mas Leandro guarda para o final, agora é a vez das marias moles. Na mesa da cozinha duas pizzas já foram, as outras duas ainda estão praticamente inteiras. Enzo puxa um beck do bolso, acende, puxa, prende e passa pra Nem. Ele e Bernardo trocam olhares de surpresa. Ó o moleque, rapá! O beck vai passando por todos os cômodos, bocas e dedos, sem perceber dois becks transitam pela casa. Enquanto isso uma playlist de divas pop trazidas por Tomaz estronda na casa, Lady Gaga, Katy Perry, Charli XCX, Taylor, Sky Ferreira, Kesha. A galera louca já encosta o sofá na parede e usa a sala como pista de dança. Miriam acaba pegando Gisele, Cássio acaba pegando Tomaz, por alguma razão louca que Enzo desconhece Nem está atracado na boca de Gabriela, bem doidão suingando no ritmo da música Enzo dança com uma latinha na mão. Ele vê Bernardo levando Stuart, o cachorro de Tomaz para o quintal. Stuart? Que irônico um cachorrão daquele com nome de rato. Enzo vai até Bernardo. Eae, tá bem louco já, hein?! Tô nada, pow. Ainda bem que eu só entro de tarde, né? Ainda bem que amanhã é domingo. Relaxa. Os dois riem. Bernardo puxa um beck do bolso. E aí, quer? Opa. Os dois sentam no muro baixo da lavanderia. Tô enjoado dessas divas pop já... Eu também... Até gosto, mas tá tocando desde o início da festa... Sim. Quando a gente entrar trocamos. Beleza. Pelo quê? Sei lá. Nós vê lá. Pode pá. E aí, quem é Ali. Ali? É... Silêncio. Ali é minha ex. Ah, tô ligado. Ela tocava guitarra e baixo na banda. Qual era o nome da banda de vocês? Sonic Youth? Os dois riem. Pode crer, mas não... Bernardo dá risada puxando o beck. Mas podia ser, nós dois que fundamos a banda. Vixe, tô falando, diz Enzo. Você na verdade é Thurston e nunca me disse, pow! Bernardo ri e passa o beck. Cala a boca, moleque. É, no fim não deu certo... Enzo dá uma tragada e solta, que nem o Sonic... Bernardo olha de canto de olho pra ele e cai na gargalhada. Mano, cê é chato. Bora lá trocar de música. Bora.
No domingo Bernardo acorda às duas da tarde. Cássio e Tomaz ainda estão no seu quarto. Na cozinha Luíza prepara algo pra cambada. Largado no sofá Bernardo liga a TV e fica passando de canal a canal até que decide desliga-la mesmo e levantar-se. E aí, conseguiu dormir? Sim e você? Dormi um pouquinho. O que você tá fazendo aí? Uma comidinha pra gente, coisa básica. Tá com um cheiro bom. Vou tomar banho. Vá lá. A ducha quente desperta Bernardo de vez. O vapor do chuveiro escapa quando ele abre a porta e vai de encontro ao vapor do café que Luíza acabou de fazer. O cheiro forte e amargo enche as narinas de Bernardo de bem estar. Luíza estende uma caneca pra ele. Forte e bem doce, como a Ali fazia pra ti. Bernardo pega a caneca e fita o líquido amarronzado que solta vapor. Tem falado com ela? Sim, de vez em quando. Ela está nos corres do TCC. Que bom. Ela perguntou de você esses dias... Ligue pra ela qualquer dia. Vou ligar. Bernardo se senta à mesa da cozinha e termina seu café. O barulho de passos vindo do corredor se aproxima. Nem e Enzo chegam. Eae. Oi. Bom dia. Tudo bem. Depois das cordialidades os dois também pegam um lugar à mesa. E a Gabi? Já levei ela pra casa. Aquela garota é louca! Quem não estava louco ontem... Pondera Luíza. Pode crer, concorda Enzo se levantando. Vim só ver como vocês estavam. Vai pra onde guri? Pergunta Bernardo. Vou ver a namorada. Namorada? Sobressalta-se Nem. É, ela tava de viagem. Chegou hoje de madrugada. E por que você não comentou nada sobre ela? Nem sabia que tu namorava... É que não tivemos oportunidade de entrar nesse assunto... Enzo e Bernardo trocam um olhar cúmplice. Até mais, beleza? Beleza. Tchau Luíza, até a próxima se a gente não se ver e tal... Até guri, gostei de ti.
Enzo só aparece no outro dia. Na hora de entrar no seu expediente. Bernardo está no PC lendo enquanto ouve The Cure. Ele levanta o olhar da tela para Enzo. Eae meu, nem apareceu ontem... Sabe como é... E aí, ela tá bem? Tá sim. Lá pelas oito ela vai passar aqui pra irmos no Açaí. Opa, já é. B., tu quer que eu venha ainda no fim da tarde pra ficar aqui? Já que tu tá de férias e tal... Não cara, eu quero sim. Pode colar. Ou você não quer? Não, eu quero sim. Então já é, ficamos aqui só vendo a turma passar. Pode crer. Eae, tá lendo o quê? Ah, Dentes Guardados. E é bom? Eu curto, cara. Eu já li uns livros do Galera. Esse foi o primeiro dele, é um livro de contos. Dá hora. Depois eu te passo, belê? Suave. Eles passam o resto das horas assistindo vídeos no YouTube. Sete e pouca Vanessa passa pra encontrar Enzo. Ele apresenta os dois. Nossa, cês tão ouvindo The Cure? Vamo ficar aqui mesmo então. Aquele Açaí só toca música sertaneja. Verdade. E aí, cês querem ficar mesmo? Ainda tem bebida lá dentro... Até rolava, mas não dá, já marcamos com o pessoal. Ah, beleza. Então Enzo, se quiser ir já, pode ir, eu fecho aqui. Mesmo? Sim, tranquilo. Então bora, Van? Uhum. Amanhã tô aí. Fechou. Boa noite. Boa. Tchau, prazer. Prazer foi meu, até. Mas depois de alguns segundos Enzo retorna. E aí, não que ir com a gente não? Hoje não, mano. Deixa pra próxima. Vai ficar devendo, hein? Pode deixar. Enzo caminha até Vanessa que está a alguns metros do bazar. Bernardo fica na porta observando os dois. O sax de A night like this ilumina a noite sem lua. Oito horas. Bernardo rola as portas pra baixo. Sozinho no sofá tenta encontrar algo pra assistir. Muda de canal, dois, quatro, seis, treze, nada. Esquece. Ele se levanta, coça a cabeça. Vai até a padaria na esquina e compra um maço de cigarros.
As férias de verão passam voando como as pipas cortadas da criançada. A escola de Enzo retomou as aulas. A facu de Bernardo também. É a vida que se rasteja como um verme na poeira podre do chão. É quinta-feira e Enzo chega meio cabisbaixo no trampo. Bernardo percebe. Eae, o que foi? Nada. Pode falar, pow. Briguei com a Van... Por que? Ah, uma fita besta aí. Besta até pode ser, mas tô vendo que importa. Enzo suspira profundamente. Ela fica me pressionando pra decidir coisas que nem passaram ainda na minha cabeça. Tipo? Morar junto, filhos, essas coisas. Sei, e aí? Fui sincero, essas coisa não passam na minha cabeça, não que eu não queira, mas vamo viver o presente, o agora, sabe? B. consente. Mas ao mesmo tempo isso é bom, né não? O quê? Ter alguém que pensa isso e ainda mais com você... Olhando por esse lado é verdade... Lógico que é. A mina gosta de ti, por isso ela planeja a vida com você. E eu um idiotão fico achando isso ruim? Né? Completa Bernardo. Pode crer, B. Viajei. É nós. Vou me arrumar ali, beleza? De boa. Quando Bernardo volta pronto Enzo lhe faz uma pergunta. B., posso te fazer uma pergunta? Diz ae. Por que você e a Ali terminaram? Bernardo faz uma interjeição, Putz. Se não quiser comentar é de boa. Não não, não é isso. Tem compromisso hoje? Tenho não... Então beleza. Bernardo vai até a geladeira e pega duas brejas. Oxe, tu não vai pra facu, não? Então, eu terminei com ela. Sério? Sempre pensei que fosse o contrário... Por que? Sei lá, seu jeito, jeito de quem sofre. Bernardo ri, pode crer. Mas e aí como foi? Cara, nós estávamos junto à cinco anos, morando junto e tal. E numa dessas fases que você tá meio enjoado de você e da pessoa com que você tá, sabe? Sei sim... Então, eu acabei ficando com uma mina... E aí? E aí que eu gostei e... Dá oito horas e eles fecham o bazar e pedem duas pizzas. Então ela te perdoou, queria voltar e tu não aceitou? Não, escolhi a outra. Mano... E cadê ela? Bernardo dá de ombros. Me deu um pé. Puta! Sério? Sério. Cabação você, hein? Eu sei... Zoeira, não dava pra adivinhar... É, não... Mas eu devia ter ficado com Ali, sabe? Enzo concorda com a cabeça. E agora ela não quer mais ideia? Teve um tempo que não, mas agora tá de boa, meus amigos vivem dizendo que ela pergunta de mim, deve ser só pra saber mesmo... Liga pra ela, pow. Fala como se sente... Eu não sei... Vacilei com a mina. Pode crer. E a conversa segue ao som de Beach Fossils. Pizza vai, pizza vem. Breja vai, breja vem. Enzo bola um beck. E do nada, num piscar de olhos, como o próprio nome diz, eles parecem que levaram um tapa. Mano, por isso eu digo, se você ama essa mina, abraça ela e cabou, tá ligado? Bernardo dá um mata leão em Enzo, tendeu? Tendi, mano, tendi. Pode deixar. A música ensolarada deixa a noite quente e abafada com uma doce melancolia.
A época dos vestibulares chega e Enzo está à flor da pele. Estuda feito um louco, fica aborrecido com os pequenos erros, anda estressado com tudo e com todos. Meu, não é assim! Que porra! Fala pra ele Bernardo, ele só ouve você! Dispara Van para Bernardo. Ei moleque! Ouve tua namorada! Obrigada. Ouviu? Calem a boca vocês dois. Tô tentando entender essa merda aqui. Eu vou embora, hein? Ah, tchau Vanessa, tchau. Vanessa vaza braba. Bernardo dá um tapa no braço de Enzo. Tá louco, caralho. Louco tá você, o. Relaxa carai, vai rolar. Você precisa relaxar. Desse jeito você se estressa, estressa tua namorada e até eu que não tenho nada ver com isso... Foi mal. Me dá essa porra ae. Não mano, tenho que terminar. Bernardo arranca o caderno e a apostila das mãos de Enzo. Tem que terminar nada não. Ó, vou vazar pra facu. Tira um tempo pra ouvir umas músicas. Tu nunca mais fez isso mesmo. E liga pra Vanessa. A chama pra ficar por aqui. Fiquem aí em casa de boa. Beleza? Tá bom, tá bom. Bernardo sai. Antes de ir pra facu passa na casa de Vanessa, consegue convencê-la. Enzo está com os olhos na tela do PC. Procura algo pra ouvir. Ele bagunça o cabelo entediado. Pega o celular e liga pra Van que acaba de chegar. Tava te ligando... O B. passou lá em casa. Foi mal, Van. Desculpa. Tudo bem, eu entendo. Também tenho andado meio assim, não? Que nada. Você sempre tá de boa. E vai se desesperar pelo quê? Se quiser você vira até astronauta! Deixa de besteira. O que cê tá fazendo? Procurando um som... Os dois ficam fuçando no computador. Vanessa para o mouse. Você precisa soltar esse corpo, dançar... Eeee lá vem... Ela dá play em Lisztomania e aumenta o som. Começa a se balançar enquanto Enzo a observa tentando fingir seriedade, mas a sua máscara acaba se desfazendo num sorriso. É uma hora da manhã e Bernardo encontra os dois deitados no sofá. A TV ligada passa e repassa o menu de Friends. Sorri e vai até a cozinha onde deixaram uns pedaços de pizza pra ele. Desliga a TV, cobre os dois com um lençol e vai dormir.
É domingo, Enzo vai até a casa de Bernardo. Faz uma semana que ele saiu do bazar. Ele e Van estão dividindo um apêzinho pelo centro. Apesar de todo desespero, ele conseguiu uma vaga numa boa universidade, mas como não é a facu que ele quer pretende tentar ano que vem de novo. Van como era esperado conseguiu o curso que pretendia, Fotografia no Senac. Bolsa cem por cento. Eae, gostou do Barba Ensopada? Louco, hein mano? Tem outro dele aí? Tenho sim, vou te arranjar. Os dois se sentam no sofá. Os Mercenários 2 passa na televisão. Eles assistem enquanto bebem umas cevas em long neck. Tá ficando fresco, hein? Cala boca e bebe essa porra. Brinde. E como vai a vida? Tá indo. Indo? Sim. E a Van? Tá tudo bem. Mesmo? Mesmo... E você? Tô bem também. A Van sempre me cobra pra vir aqui, fica preocupada com você enfurnado nessa loja e nesses livros cheios de mofo e traça. Os dois riem. Já falei pra ela que você é um lobo solitário, mas ela não acredita... Então a convença. Mas eu também não acredito... Os dois se olham. Eles conversam sobre a nova casa de Enzo, o novo emprego, sobre a velha vila que não muda, sobre a facu, sobre o novo funcionário, pois agora B. está lecionando. Dá a hora de ir. Bernardo entrega outro livro do Galera para o amigo. Até o dia que o cão morreu. Valeu B., vou ler. Espero que goste. Os dois se abraçam. Sinto sua falta, cara. Eu também. Ah, tenho isso aqui também, antes que eu me esqueça... É um CD da banda de vocês? É... E que nome é esse? Não gostou? Não, é horrível. Eu sei. Tô brincando. Quando der apareça lá em casa. A Van vai adorar. Pode deixar. Pode deixar? Você só fala. Não se preocupe que a gente vem te ver... Até mais mano. Até. B. volta pra casa e se senta no sofá, o filme acabou faz tempo, desliga a TV, ele toma um banho e deita. Não consegue dormir. Levanta, acende a luz, pensa. Pega o celular que está no carregador. Olha para os números. Até hoje ele nunca se esqueceu. Será que ainda é o mesmo? Digita. Liga com o número restrito. O celular dela chama... uma, duas, três, quatro... Ela atende. Alô... Fica calado. Ouve a respiração no outro lado. Insiste. Alô? Quem é? Ele desliga. Levanta-se, acende um cigarro e abre a janela do quarto. O peito vazio se enche de fumaça que logo é liberada e se espalha no céu formando nuvens que cobrem o dourado da lua.
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