Já fazia um mês que meu tio morava com a gente. Ainda não entendi o que aconteceu. Um dia ele chegou aqui com uma mala e uma mochila. E o seu velho violão. Pai o acolheu de bom grado. Colocamos o sofá da sala no meu quarto. Abri mão da minha cama, pois já dormia mais no sofá para assistir televisão do que nela, já não era minha mesmo. Toda noite conversávamos antes de pegarmos no sono. As suas histórias sobre a infância e o Nordeste substituíram os programas. Me falava da minha vó Ruth que infelizmente não conheci. Conheci mas muito criança e esqueci. Em todas as histórias que a família conta a vejo como uma mulher de personalidade forte e ao mesmo tempo amável. Queria ter guardado alguma lembrança dela, podia ser a mais simples de todas, um olhar, um gesto ou um sorriso. Foi dela que meu tio pegou o gosto pela música. Ela que o ensinou a ler e quem o incentivou a tocar violão. Todas as noites ela cantava na cozinha e ele sentado no chão acompanhava-a com seu violão. A última vez que a viu viva foi na sua despedida para São Paulo. O seu abraço forte e suas lágrimas grossas molharam o seu rosto. Depois só a viu no caixão. Rodeada de flores brancas e amarelas. Ainda não sei o porquê que ele se separou da mulher. Minha avó a adorava. Os dois vieram juntos para o sudeste. Aqui ela conseguiu dar aulas na escola, para turmas da quarta série. Ao que parece meu tio teve dificuldades para conseguir um emprego e se adaptar a nova vida. E começou a beber. Todas as noites ela chegava em casa e ele estava no bar da esquina. Só voltava caindo de bêbo. Formado em história, não teve a sorte da mulher, cansado das rejeições passou a beber, até que conseguiu um emprego numa sebo no centro de São Paulo. Mas quando parecia que tudo estava indo bem, ele apareceu aqui com suas trochas. Questionado pelos meus pais do motivo da separação fez segredo e ainda o faz. Respeitamos o seu silêncio. Certo dia ele me veio com um LP que pegou na sebo. Era o início de uma rotina. Toda semana trazia um LP diferente. Ouvíamos durante nossas conversas noturnas. Meu pai ainda tinha uma vitrola véia que trouxemos para nosso quarto. O chiado e os ruídos acompanhavam as canções de Dominguinhos, Hyldon, Adoniran, Belchior. Comecei também a me interessar por música. Chegava da escola pela tarde e aproveitava sua ausência para brincar com seu violão. De noite ele chegava e ficava olhando para o instrumento no seu canto, como que sentisse que havia sido mexido. Outro dia cheguei da escola e havia duas revistas que ensinavam a tocar em cima do sofá. Aprendi o básico, a escala cromática, a leitura de cifras e as músicas cifradas que elas traziam. Com mais revistas e práticas de meses comecei a pegar as músicas só de ouvido. Fazia muito tempo que meu tio não tocava. Um dia deixei o instrumento em cima do sofá junto com as revistas abertas e a vitrola a tocar Clara Nunes. Eu que voltava da cozinha o vi pela fresta da porta pegando o violão e montando os acordes. Mas logo o devolveu ao sofá. Tirou mais um disco da mochila e se deitou na cama. No último dia dele em casa peguei o rádio velho de minha mãe e me gravei tocando e cantando. Dei a gravação, mas ele preferiu me ouvir pessoalmente no lugar da fita. Sentamos no chão e eu nervosamente dedilhei e timidamente cantei:
“Tô cansado e você também.
Vou sair sem abrir a porta e não voltar nunca mais.
Desculpa a paz que eu lhe roubei.
E o futuro esperado que eu não dei.
É impossível levar um barco sem temporais.
E suportar a vida como um momento além do cais.
Que passa ao largo...
Do nosso corpo.
Não quero ficar dando adeus.
As coisas passando eu quero... e passar com elas eu quero.
E não deixar nada a mais do que as cinzas de um cigarro e a marca de um abraço no seu corpo.
Não, não sou quem vai ficar no porto chorando não.
Lamentando o eterno movimento, movimento dos barcos, movimento, movimento dos barcos, movimento, movimento dos barcos, movimento...”
Olhei para ele ao terminar e seus olhos seguravam a emoção. Me deu um abraço e agradeceu. Saiu pela porta do meu quarto e foi embora assim como veio. Meu tio não apareceu no dia seguinte e nem no outro e nem nos próximos. Ele sempre fora reservado e evasivo. Alguns amigos da minha família dizem que ele viaja pelo Brasil. Como e fazendo o quê da vida para nós é mistério. As coisas que ele deixou em casa passaram naturalmente para mim. Já estavam no meu quarto mesmo. Venho crescendo e as suas roupas tem me caído perfeitamente bem. Minha família se surpreende com a nossa semelhança física e comportamental. Um dia, para minha surpresa, ele enviou uma carta para mim. Estava em Porto Velho. Não me disse a razão ou o que estava fazendo. Mas suas palavras aludiram àquela velha canção do Macalé:
“Sobrinho, movimente-se! Não fique parado a observar os barcos. Movimente-se e faça seu caminho”.
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