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Passeio


Chevette preto. Versão SL. Um ponto quatro. Rodas cromadas. Vidros sufilmados. 

Passa a cento e vinte quilômetros por hora na Avenida Belmira Marin.

O limite na avenida periférica é de sessenta.

O clássico de 76 some bairro adentro.

São duas e quinze da manhã.

Milo, Cuca e Joey conversam na frente da casa de Macau.

Contam vantagem do último rolê entre risadas e a fumaça dos cigarros e baseados.

Mas se assustam quando um carro estranho na quebrada estaciona na frente deles.

Imediatamente os vidros descem e a luz interna do carro acende.

Não há ninguém no veículo.

Ficam sinistramente cabreiros.

O estofado de couro dos bancos fica mais brilhoso sob a luz branca do teto.

Os amigos temerosos se levantam para entrar em casa quando o rádio do carro liga sozinho:

“Vamo andar pelas ruas de São Paulo, por entre os carros de São Paulo, meu amor, vamos andar e passear” *.

Eles se entreolham se perguntando se isso seria um convite.

Macau convence os amigos a entrar, pois isso só pode ser brisa.

A música no rádio continua: “nesse cimento, meu pensamento e meu sentimento só tem o momento de fugir no disco voador, meu amor, meu amor, meu amor!” *.

Ao que Macau no banco do motorista responde:

“Então Simbora!”

E o chevette com seus passageiros some como se fosse tragado por um vácuo no espaço e no tempo.

Ali no Grajaú.

*Passeio, canção do cantor Belchior. 

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