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Mostrando postagens de abril, 2016

Mais uma noite fria de chuva qualquer

Pedro toma um café no balcão de um bar. Na TV alguma notícia sobre o mundo. Ele assiste indiferente. Nas mesas de fora observa duas amigas que conversam. Elas já estão na terceira cerveja. Sorriem à toa. Lindas. A breja, a conversa, as blusas e os cachecóis as aquecem do frio. Uma garoa começa a cair. A intensidade aumenta e ela se transforma numa chuva. As garotas e outros clientes entram no bar. Um cara de boné e mochila preta se refugia no toldo do estabelecimento. Ele consulta o celular. Nas mesas lá no fundo um casal com a filha parece se divertir. O pai é enorme, a mãe é um pouco menor e a filha é pequenina. Os olhos dos pais brilham a observar a garotinha que se diverte enquanto come. Pedro paga o café e vai para o toldo. Acende um cigarro. Os carros que passam com seus faróis revelam as gotas que estão prestes a molhar o asfalto. Os postes iluminam a noite chuvosa. Pedro joga sua bituca no chão, cobre a cabeça com a toca da blusa e caminha na chuva com suas mãos no bolso. ...

Discurso Conservador Brasileiro

Hey arranje um emprego, mude essa roupa, corte o cabelo, tire a barba, não fume cigarro, muito menos maconha, não leia certos livros, compre uma bíblia, pare com essa música, coma essa vadia, bata nela, coma outras, bata nelas também, ande direito, seja homem, compre uma arma, os americanos são fodas, índio é beberrão, preto é ladrão, pobre é vagabundo, bichas são doentes, esquerdistas são terroristas, nordestinos são burros, professores reclamam demais, pt nunca mais, ditadura sim, vá para igreja, não pise num terreiro, deus é bom, o diabo é mal, amo meu país, ganhe dinheiro, se case e tenha filhos, ensine o ódio, ensine o preconceito, ensine o racismo, ensine o machismo, ensine a homofobia, ensine a ignorância, ensine o horror, ensine o terror, ensine o medo, ensine o fascismo, ensine o ódio. 

Fofis

Wesley corre desesperado para casa. Envergando o corpo pra frente e contraindo as nádegas para segurar a vontade. Parece que quanto mais próximo mais ela aumenta. Chega esbaforido em casa e se apressa para o banheiro. Quase que não tem tempo de abaixar as calças. Haaaa. Sente-se aliviado. Que aperto. Ao olhar ao lado não vê o papel higiênico. Nem no armário da pia. Putz. Ô BIIIIIIAAAAH! BIIIIAAH! Bia grita. OIEE! Que foi?! Tá doido?! Meu, compra um papel ali no Juarez. Vim numa carreira só e não percebi que tinha acabado. Você quer dizer caganeira só, né?! Wesley se irrita. Anda logo menina. Tá bom, tá bom. No Juarez Bia decide qual marca de papel levar para casa. A que sua mãe sempre compra aparentemente acabou. Distraída olhando para a parte de cima da prateleira onde os papéis ficam ela tromba com Emily. Oi Em, tudo bem? Tudo sim e você? Também estou bem. E aí, o que procura? Vim comprar aquele papel de dupla camada, sabe? Fofinho e tal. Ah, sei, o Fofis, né? Isso. O que tem uns ur...

Manhã Escaldante

Nanda espera Leo na mesa da cozinha. Bebe um café quente vestida com seu roupão vermelho. Desvia o olhar das mãos que apertam a caneca para o relógio na parede. O ponteiro menor está no número oito e o maior no dez. Os olhos fundos revelam mais do que seu cansaço, são reflexos da angústia e frustração. Ainda não pregou as pálpebras e o café ajuda na tarefa de deixá-las abertas.  Ouve as chaves na fechadura da porta. Apreensiva acompanha os passos que vão se aproximando. Leo entra na cozinha. Encara-a indiferente enquanto Nanda o evita olhando para baixo, para seus dedos delgados que nervosos apertam a caneca com mais intensidade. Ele pega a garrafa de café que está em cima da mesa, na pia pega um copo que seca no escorredor. Com o café fumegante sai mudo assim como entrou. Ela ouve o ranger do couro do sofá e as vozes da televisão. Levanta-se e no quarto tira o roupão. Se olha no espelho. Ganhou uns pneuzinhos na cintura, mas continua maravilhosa. Toma um banho e escol...

Assalto

Susan se sente impotente. Impotente diante da vida. Ela ainda se lembra de se sentir perdida com o fim do ensino médio, enquanto seus amigos e a maioria dos seus colegas de classe já tinham tomado resoluções em relação à faculdade, cursos e trabalhos, ela ainda tentava analisar todas as suas possibilidades. Durante essa fase o que lhe dava mais ódio ainda, mais do que não saber o que fazer, eram os planos de terceiros sobre o que ela não tinha o menor interesse, apesar de não saber o que queria, ela definitivamente sabia o que não queria, um emprego chato, um namorado para afirmar sua sexualidade, um carro para ficar parada no trânsito, uma faculdade sinônimo de empregabilidade, estabilidade e grana. Essas exigências sociais lhe aborreciam. Quando enfim ingressou na faculdade e pôs a cara nos livros elas pararam um pouco. Só não sabia que elas voltariam com mais peso depois de quatro anos de Ciências Sociais e que ela se sentiria mais perdida ainda. Como a impotência de um assalto...

Sem o chumbo, só com o amor

Maira de 63 anos está sentada no seu sofá sóbrio. Seu vestido é âmbar e suas unhas são pretas. Seu cabelo curto e grisalho, seu óculos elegante no colo e seu batom discreto destoam da convulsão de lágrimas que irrompem de seus olhos. Elas são quentes e não é devido à iluminação montada em sua sala. Anitta pensa em desligar a câmera. Desculpa. Tudo bem. Não, desculpa. Vamo parar... Não, não. Podemos continuar. Certeza? Sim. Então, tá... Eae galera, tudo certo? Rodando. Tudo bem... Qualquer coisa é só dizer, tá? Maira concorda com a cabeça afirmativamente. Certo... Então, qual foi à última vez que você viu o Aylton? Foi em 71. Ele me levou da faculdade para casa. Disse que ia numa reunião. Vi sua silhueta desaparecer no contraluz do fim de tarde. Era nossa despedida e eu não sabia. Lembro da calça sarja ocre, do jaco marrom por cima da camisa social branca, do maço de cigarro no bolso da camisa, dos sapatos pretos, do cabelo castanho p...

Sexta de Noite

A gata ronrona no meu colo enquanto você provavelmente deve estar ronronando na sua cama. O som ronrona baixinho com suas distorções e ruídos. A ceva ronrona enquanto rola pela minha garganta. Numa sexta de noite. Numa sexta de noite. Escrevo pra você numa sexta de noite. Não me pergunte à hora exata e nem a data ou o mês ou até mesmo o ano. Foda-se. Escrevo-te no presente, pois assim parece que estou a falar com você nesse instante, assim as palavras passam a impressão de estarem rolando agora, naturalmente, numa espécie de prosa espontânea misturado com fluxo de consciência ou de pensamento, digressões, confusões, distorções, invenções. Você não percebeu, mas fiquei um tempo sem escrever só ouvindo as reverberações da voz da cantora e durante essa audição dei alguns goles na minha sétima, oitava breja, sei lá, já perdi as contas, pode ser que esteja exagerando. As guitarras parecem que estão numa espécie de vórtice, um vórtice onde eu me deixo levar, vou deslizando, degringolando, n...

Playground

Foto: Paulo Sommer Começo de tarde. Carlos e Thiago estão cansados de caminhar e sentam nos bancos do Parque Trianon. Em frente ao banco tem um playground infantil. Carlos fuma mais um de seus cigarros. Enquanto isso Thiago observa a cena que desenrola na frente de seus olhos. Pais vão embora com seus filhos. Outros chegam com seus pequenos. Uns somente observam. Outros interagem na brincadeira. Um pai alto e branco, louro, corte de cabelo quadrado escora-se nas barras de um brinquedo para mexer no seu celular. Sisudo. Seus olhos alternam entre o filho e o celular. Às vezes demoram-se mais no celular. Quando fala com o filho é para repreendê-lo. Thiago acha a cena curiosa. Uma mãe que empurrava a filha no balanço agora está sentada no banco. De lá observa a menina que se balança pra frente e pra trás. Também alterna entre a filha e o celular. O marido parece que não está com ela. Pode estar falando com ele. Pode nem ter marido. É mãe solteira. E assim fala com o namorado, ...

Corrijo-me

Minha tia tinha um cachorro que parecia gente. O nome dele era Scorpion. O nome era em homenagem a banda alemã, sim, meus tios são metaleiros, não, não era uma homenagem ao personagem do gamer Mortal Kombat. De muitas formas um cachorro parece uma criança, tem que se estar atento a qualquer variação de seu comportamento, hiperatividade, tranquilidade, fugas para debaixo de camas e mesas, choros, uivos. Às vezes não dá pra saber o que eles querem, comida, água, carinho, rua, proteção, e assim usamos o método que a maioria dos pais usam com os filhos quando pequenos e não conseguem se comunicar, e quando já grandes e não querem se comunicar, ou seja, tentativa e erro, na dúvida, melhor fazer tudo o que você acha que seu cãozinho ou filho talvez queiram. Meus tios acostumaram Scorpion com comida, feijão, arroz, carne, frango, peixe (sem espinhas, evidentemente), aqueles beliscos no almoço e na janta que deveriam ser só exceções acabaram se transformando em regra. Assim o bicho só com...

Lobo Solitário

Enzo caminha para a escola. Durante o trajeto passa por um bazar escolar pequeno, mas bem arrumado, prateleiras e objetos bem distribuídos pelo espaço, parece ser um local bem arejado e limpo. Um lugar que dá vontade de entrar. Nos fundos um balcão de vidro, sobre ele um computador e atrás do balcão um cara simples numa cadeira assistindo algo no PC. Ele aparenta ter uns vinte anos, talvez beirando os trinta. Barba por fazer e de boné. Fones no ouvido. Desligado do mundo. O professor passou um daqueles trabalhos horríveis para turma. Eles precisam desenhar um átomo, fazer uma espécie de cartaz para colar na sala. Enzo vai até o bazar que sempre lhe convida a entrar pra comprar uma cartolina. As cartolinas, os crepons e todos esses tipos de papéis que são desperdício de árvores estão enrolados e dentro de pequenas caixas de papelão que ficam numa prateleira atrás do balcão. Enzo entra e observa o lugar, o cheiro do estabelecimento é agradável, ele passa pelas prateleiras cheias de ...

Festa de um homem só

Que ressaca da porra. Vomitei no cobertor. Que nojo. Preciso de um banho, mas não consigo me levantar. Na real, não consigo nem se quer lembrar do que aconteceu ontem. Eu saí? Estava com alguém? Por que estou nu? Será que transei? Foi com uma mina ou com um cara? Merda. Meu estômago dói, meus olhos ardem, sinto-me quebrado. O chão do quarto está cheio de latinhas vazias, cinzas e guimbas de cigarro. Lembro de música, tinha uma galera com uns violões e diversos instrumentos de percussão, batendo palmas, cantando inspirados, bebendo com aqueles copos vermelhos, umas minas lindas com seus vestidos e shorts curtos, umas sem sutiã, cabelos soltos e amarrados, outros lindamente armados, franjas, bocas vermelhas, grandes e pequenas, pareciam pin-ups, outras mais moderninhas, uns caras gatos também, estilo lenhadores, outros pareciam ter saído agora da era rockabilly com seus topetes e roupas engomadas, olhos calmos e penetrantes, com barba e sem, o pomo de Adão saliente. Acho que rolou Beatl...