Spike está deitado na grama molhada que separa as duas vias da Belmira Marin. Repousa a sua cabeça nas patas dianteiras esticadas no gramado. Coça suas costas com os dentes, tira a língua pra fora e levanta a cabeça acompanhando os ônibus que vão para os bairros localizados ao fim da avenida, Cocaia, Lago Azul, Prainha, Lucélia, Gaivotas. Mas aos poucos a Belmira vai se esvaziando. A quantidade de ônibus diminui em relação à quantidade de pessoas que começam a lotar e transpor a pé as calçadas com suas lojas de roupa, padarias, pet shops e mercados. Spike indiferente ao que acontece volta a deitar a cabeça sobre as patas.
O terminal Grajaú está entupido. A linha para o Cantinho do Céu possui pelo menos cinco filas e filas enormes. Muitos já chegam e nem perdem tempo. Passam pelas catracas do Terminal e começam a procissão para casa. Uma caminhada de quarenta minutos da forma que acharem melhor, passos rápidos, passos lentos, observando o trânsito da avenida, conversando com o amigo ou outro desafortunado qualquer, ouvindo música com os fones de ouvido, fumando os cigarros um por um, parando nos bares para uma dose, comprando uma água ou uma cerveja para se refrescar, adocicando a vida com um bolo no Sodiê Doces, o povo é criativo. Durante o trajeto o cochicho revela que a Bola Branca alagou e por isso todo esse transtorno.
Como o povo de Israel que ao chegar ao mar vermelho tem a sorte de deus abri-lo, os moradores do Grajaú tem a sorte de encontrar a Bola Branca transponível. Toupeiras. Nem sabem que muitos que passaram primeiro do que eles nesse trecho não foram agraciados pelo divino e sim por uma água imunda até a canela e o medo de contrair doenças. O campo de futebol que antes era frequentemente utilizado para partidas ainda está submerso pelas águas da chuva que se juntaram com a do córrego escondido pelo mato e pelos prédios do BNH. Da Bola Branca pra frente à avenida está vazia e muitas pessoas exaustas tentam pegar algum ônibus que por sorte está passando por ali agora depois de horas parado no trânsito. Não importa se o ônibus irá para o bairro ou passará na entrada dele, é uma chance de economizar energias, pois amanhã ainda é dia de trabalho.
O trânsito do trecho entre o Extra e a Marabraz começa a normalizar. Muitas pessoas desistem de pegar os ônibus, já estão tanto tempo caminhando e tão próximas de casa que acham tolice gastar dinheiro nessas porcarias enlatadas. Se ao menos pudessem gastar a passagem com pão ao chegar à vila seria uma boa, mas não, o dinheiro fica preso nos seus bilhetes assim como suas vidas nessa única entrada e saída. Enquanto isso Spike continua deitado e se coçando, acompanhando o trânsito na avenida, seja ele qual for. Deitado próximo de uma barraquinha de DVDs, sentindo o cheiro da carne dos espetos assados de outra, às vezes com sorte de comer um pedaço de gordura jogado no chão ou um pedaço de carne qualquer jogado em sua direção, esperando de boa os ventos a seu favor enquanto continua a observar uma multidão cansada caminhando contra o vento, tentando mudar a sorte com seus próprios corpos.
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