Fonte (Marcel Duchamp, 1917) |
Segunda. Sérgio chega ao trabalho. Ele trabalha de operador de telemarketing num prédio na República. Já faz quatro meses que ele está prestando serviço pra essa empresa, Sky Comunicações, mas ele ainda continua estranhando e tentando compreender as tarefas que tem executado. A primeira coisa estranha é que parece que ele é o único funcionário nesse prédio todo. Ele nunca viu outros funcionário na hora da entrada, ou durante o trabalho, almoço ou saída. Ele é proibido de sair da sua sala durante o expediente. Uma trava eletrônica é ativada assim que ele entra e só é desbloqueada no horário de almoço e no fim do dia. A sala onde Sérgio trabalha é grande, ela tem banheiro, frigobar, cafeteira, microondas, sofá e uma mesa com computador, impressora e telefone. Todo dia a sua sala está limpa e organizada, com produtos repostos na geladeira e dentro da validade, café quente e fresco, papelada organizada, por mais que ele a tenha deixado uma zona no dia anterior, no dia seguinte ele sempre a encontra arrumada. Essa é a segunda coisa que lhe incomoda, pois estranhamente nunca viu um funcionário da limpeza ou o que seja. A terceira coisa é que ele não faz nada no trabalho. Ele foi contratado como atendente receptivo, mas nunca recebe ligações, nem umazinha se quer, nem uma reclamação, o que já é extraordinário. Ele passa o dia todo no ócio, jogando paciência no computador ou comendo as besteiras do frigo. E foi assim durante um mês até que ele começou a programar suas recriações, levou seu videogame para o escritório e filmes e livros. Certo dia ele tentou sair da sala fora dos costumeiros horários, passou o cartão no aparelho eletrônico da porta e teve a sua saída vetada. A pequena luz vermelha do aparelho acendeu para seu desespero. E se ele estivesse passando por um problema e necessitasse sair urgentemente? Como ficaria? Aquilo foi à quarta coisa que o perturbou. E o perturbou profundamente que resolveu ligar para o número do cartão que o representante do RH lhe deu assim que foi contratado. Estranho, ele também nunca mais viu esse funcionário... Parece que ele tem uma quinta coisa na sua lista de estranhezas. O cartão era todo branco, nele constava somente o nome da empresa e um número de três dígitos 3 3 3 com duas letras garrafais na frente delas JR. Ele sabia que os números de telefone possuem pelo menos oito dígitos, o que isso seria afinal? Um ramal? Não importa. Nessa segunda-feira ele resolve ligar nesse estranho número. Senta-se na sua mesa e digita o dígito 3 três vezes. O telefone toca três vezes antes que uma voz forte, ressonante e bem modulada o atenda. Pois não? Alô... Alô... Sim. É... Aqui é da unidade da República da Sky Comunicações... Sim, sei. Você tem feito um ótimo trabalho. Continue assim. Até logo. Não não, espera... Quem é? Você sabe quem eu sou. O meu chefe? Não, Deus. Deus? Até logo. Então Deus desliga o telefone deixando Sérgio com cara de quem não entendeu nada. Que estranho. Ele passa o dia pensando nessa ligação. Seria Deus mesmo? É óbvio que não. Para piorar Sérgio era ateu. Que empresa maluca. Que dia maluco. Que telefonema maluco. E quem é esse maluco que se diz Deus? Maluco sou eu, pensa Sérgio, como topei trampar nesse lugar... Tô fora. Amanhã eu não volto. Sérgio não volta mais para o prédio da Sky, um mês depois descobre que o prédio foi desativado e que agora funciona como um cortiço, nesse tempo Sérgio já está trampando em outra empresa de telemarketing, uma empresa sem excentricidades para variar, com muitas pessoas estressadas e atarefadas ao seu redor. Finalmente a tal da normalidade. Um dia voltando do escritório passa numa padaria e compra pães e leite. Ao chegar em casa encontra um envelope embaixo da porta. No envelope não consta remetente e nem destinatário, CEP e etc. Só um nome escrito com caneta de tinta azul, Sky Comunicações. Ele olha o envelope com incredulidade e o abre. Dentro dele uma folha em branco com as mesmas informações daquele bilhete: JR 33:3. Entre parênteses a explicação: (Jeremias capítulo trinta e três e versículo três). Era uma referência bíblica. Ainda bem que quem escreveu essa carta já anexou o texto bíblico, por que ele não ia consultar essa passagem, nem bíblia tem em casa. O texto dizia: “Clama a mim, e responder-te-ei, e anunciar-te-ei coisas grandes e firmes que não sabes”. Que carta maluca. Sérgio pega a carta e joga no lixo do banheiro. Caga enquanto pensa como as pessoas ainda perguntam por que ele não acredita em Deus. Como se algo fizesse sentido nessa privada cheia de bosta. Dá descarga e sai sem nem lavar as mãos.
kkkkkk.... Muito bom! Surpreendente!
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