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Mostrando postagens de março, 2016

Por Favor

Em flor de lótus ele sibila a palavra sagrada Om em busca do nirvana para pôr um fim ao samsara e extinguir o seu carma. No confessionário sentindo-se culpado ele segreda os pecados ao padre e segue ao genuflexório para pagar por eles com um rosário e quinze Ave-Marias. De joelhos no chão frio ele pede perdão a Deus com medo do inferno enquanto barganha a sua salvação dando dez por cento do seu salário para o pastor. Na mesa de um bar com amigos eu celebro a vida e os seus mistérios. Não acredito e não quero que nada e nem ninguém me alivie da culpa.  De duas uma, ou levarei ela para o túmulo ou o tempo acabará com a sua importância. Não há remédio e nem paliativo. Não quero pureza, não quero perdão, não quero salvação, eu quero ser humano, e por ser humano eu quero viver por completo, em plenitude com tudo que é inato a minha condição e natureza. E por favor, não me acabem com o mistério. Há quem goste de dar sentido pra tudo, já eu gosto das brechas, ...

Eu quero um jazz

Eu quero um jazz. Mas não qualquer jazz. Quero um jazz livre, solto, desenfreado, arrebatador, virtuoso, catártico, negro e africano. Os brancos transformaram a música erudita em mero formalismo rígido e sem vida, coube aos negros devolvê-la a pulsação através da criação e do improviso. Além de aprisionar a música, os brancos também aprisionaram os negros com seus grilhões visíveis e invisíveis, mas apesar disso, eles não conseguiram aprisionar a alma e o espírito, partes que eram incapazes de ver, além da cor da pele e dos traços físicos. O jazz nasce do confronto e não do encontro com tradições europeias, assim como a liberdade, a cidadania e a igualdade nasceram também pelo confronto com a segregação e o preconceito. Jazz é o confronto com a estrutura, com a melodia, com a tonalidade, com a concepção rítmica ou métrica, com a unidade, com a sociedade e com a posição que esta reserva para os seus criadores. O jazz é resistência, é contracultura, é em sua essência, negro. Das wor...

Bang

Márcio e Moacir são irmãos. O costume da família de dar nomes aos filhos com a mesma letra poderia fazer dos dois mais unidos. Mas sempre houve uma rivalidade entre eles. Por vezes escancarada, por vezes velada, mas ela era latente mesmo quando tácita. Além do M eles sabiam que por baixo das suas peles corria o mesmo sangue. Compartilhavam dos genes dos seus pais. Mas assim como a relação entre os genes e o meio resulta em traços físicos diferentes daqueles que são herdados geneticamente, a interação dos dois com o meio onde estavam inseridos gerou diferenças de pensamento e comportamento. Com o fim do Ensino Médio Márcio ingressou em Artes Cênicas na USP, enquanto isso Moacir dava duro como motoboy. Revolta-se com essa do irmão de estudar teatro. Isso não botava comida na mesa. Não enche barriga. Pra Moacir era coisa de veado e vagabundo. A sorte era que o irmão se virava sozinho. Não era um estorvo para os pais. Moacir ainda morava com os pais, mas ajudava nas despesas. Márcio di...

Bom Senso

A fogueira está acesa. Gravetos vermelhos e azuis queimam em combustão constante. Gravetos cinzas tentam controlar o fogo. Debalde. O fogo arde sem parar. As opiniões são inflamadas gerando uma bipolaridade de guerra fria, algo que se poderia pensar ultrapassado. Ledo engano. Caça às bruxas. Interesses. Oposição. Governo. Bancos. Dólar. Economia. Políticas Sociais. Galhos secos de tão velhos que poderia se supor que já não inflamam mais. A mídia joga gasolina fazendo labaredas que escapam do espaço circunscrito das chamas. E assim sucessivamente a fogueira se transforma num incêndio de grandes proporções. Embaixo da fumaça, das labaredas, dos gravetos e de tudo que o fogo consome, as primeiras cinzas começam a aparecer, mas ninguém consegue reconhecer o bom senso, imóvel e carbonizado no meio dessa loucura fumegante.

Sky Comunicações

Fonte (Marcel Duchamp, 1917) Segunda. Sérgio chega ao trabalho. Ele trabalha de operador de telemarketing num prédio na República. Já faz quatro meses que ele está prestando serviço pra essa empresa, Sky Comunicações, mas ele ainda continua estranhando e tentando compreender as tarefas que tem executado. A primeira coisa estranha é que parece que ele é o único funcionário nesse prédio todo. Ele nunca viu outros funcionário na hora da entrada, ou durante o trabalho, almoço ou saída. Ele é proibido de sair da sua sala durante o expediente. Uma trava eletrônica é ativada assim que ele entra e só é desbloqueada no horário de almoço e no fim do dia. A sala onde Sérgio trabalha é grande, ela tem banheiro, frigobar, cafeteira, microondas, sofá e uma mesa com computador, impressora e telefone. Todo dia a sua sala está limpa e organizada, com produtos repostos na geladeira e dentro da validade, café quente e fresco, papelada organizada, por mais que ele a tenha deixado uma zona no dia ante...

Mexe

Para Rafael a festa de Jota podia terminar agora, Liz o convidou para dormir no seu apartamento, para ele nada mais importa, é hoje, é hoje, Rafael soa de ansiedade, ele já decorou todas as tatuagens dela, todas à mostra, evidentemente, aquela frase do Camelo no braço, aquele trompete atrás da orelha, aquela árvore de galhos secos no pescoço, aquele violãozinho no pulso, ele se pergunta o que tem mais para descobrir no seu corpo pequeno e moreno. Na verdade, ele também queria ficar no corpo dela feito tatuagem, mas não sabe se ela nutre os mesmos sentimentos, melhor não falar nada. O álcool nele sorri, os seus olhos brilham vermelhos, uma leve tremedeira deixa seu corpo nervoso, aguarda Liz que foi buscar umas brejas na geladeira, não consegue relaxar no sofá, com as pernas juntas, dedos da mão enlaçados, olhos irrequietos a observar o apartamento dela, fudeo, fudeo, vem vindo. Coloca as latinhas na mesa de centro e se joga ao lado dele em busca de sua saliva quente. Os seus lábios mo...

É Dele, É Minha, É Nossa

Com as mãos no bolso e gingando Emerson passa na frente de um bar. Uma galera se reúne na porta do estabelecimento de Nivaldo. Uma jovem loura e de vestido vermelho lhe ultrapassa chamando não só a sua atenção, mas do bar inteiro que imediatamente assobia e solta piadinhas pra cima da guria que rebate as investidas com silêncio e indiferença, mas também com um nítido constrangimento. Emerson fica com dó da moça e se pergunta qual é a dos caras, a mina é casada e com certeza um deles sabe. A quebrada é cheia de hipócritas que odeiam talaricos, mas anseiam perdidamente em ser mais um. Emerson não sabe o motivo, mas uma culpa se instalou nele. Ele poderia ter repreendido aquela rapaziada sem noção. Mas quem Emerson quer enganar, ele também é homem, quem sabe tal defesa produziria comentários contra a sua índole e pior contra a índole da moça também. Pensa como sua namorada se sentiria se fosse alvo de semelhante episódio e como sua masculinidade seria ameaçada com isso... O que não l...

Abraço na Rodoviária Tietê. Faz seis anos que pai e filho não se veem e não se sentem. Vindo de Luís Gomes, serra interiorana no oeste do Rio Grande do Norte, divisa com Uiraúna na Paraíba, o pai chega a São Paulo depois de três dias de viagem. O clima seco do sertão agraciado pela brisa da noitinha da serra potiguar dá lugar à garoa fina do fim de tarde que cai no asfalto quente da imponente capital paulista. Com uma mala cheia de saudades e caixas cheias de presentes, castanhas, seriguelas, rapadura, goma de tapioca, doce de caju, de mamão com coco, e outras coisas mais da saudosa terra castigada, mas sempre querida no interior do coração da sua gente, o pai vem de braços abertos visitar o filho e a família que veio buscar a sorte onde as gotas de chuva caem para disfarçar as lágrimas do povo que aqui chora. Estabelecido em Jandira, na microrregião de Osasco, na Grande São Paulo, o filho tem uma longa jornada para casa junto com o pai. Da linha azul eles precisam desembarcar ...

Let It Be

Guitarra, acordes, riffs melancólicos, voz suave. Três e trinta e oito da madrugada. Insônia. A luz irradia do monitor. Um cigarro pela metade no cinzeiro. O gosto amargo do café se encorpa com o gosto amargo de cada tragada. Folha em branco do Word. Como a própria vida. O que colocar nela... cores, formas, imagens, sabores, saudades, lembranças, pessoas, medos, anseios, sonhos, excentricidades, inseguranças, vaidades, desejos, divagações, imaginações, realidades, simplicidade, solidão, ausência, vazio, fumaça, café, cigarro, livros, música, filmes, morte, palavras, silêncio. Se não consigo controlar a vida, é ilusão achar que consigo controlar as digressões confusas que insistem em abarrotar o papel. Por isso apenas deixo estar. Além dessa folha a música continua, os cigarros acabam e a vida se arrasta.

Vida de Cachorro

Spike está deitado na grama molhada que separa as duas vias da Belmira Marin. Repousa a sua cabeça nas patas dianteiras esticadas no gramado. Coça suas costas com os dentes, tira a língua pra fora e levanta a cabeça acompanhando os ônibus que vão para os bairros localizados ao fim da avenida, Cocaia, Lago Azul, Prainha, Lucélia, Gaivotas. Mas aos poucos a Belmira vai se esvaziando. A quantidade de ônibus diminui em relação à quantidade de pessoas que começam a lotar e transpor a pé as calçadas com suas lojas de roupa, padarias, pet shops e mercados. Spike indiferente ao que acontece volta a deitar a cabeça sobre as patas. O terminal Grajaú está entupido. A linha para o Cantinho do Céu possui pelo menos cinco filas e filas enormes. Muitos já chegam e nem perdem tempo. Passam pelas catracas do Terminal e começam a procissão para casa. Uma caminhada de quarenta minutos da forma que acharem melhor, passos rápidos, passos lentos, observando o trânsito da avenida, conversando com o ...