Pular para o conteúdo principal

Surto Contido

Uma senhora raquítica de óculos de tartaruga passa suas compras no caixa de uma mercearia. Café, açúcar, leite, pães e frios. Parece que ela vai fazer um lanche da tarde. O caixa soma os produtos. Dezenove reais. Isso tudo?! Não, tá errado. Soma de novo. O caixa soma novamente. Oito e cinquenta do café, dois reais do açúcar, dois e cinquenta do leite, dois reais de pães e quatro reais de frios. Deu dezenove reais, senhora. Muito caro. Quanto é o café mesmo? Oito e cinquenta. Vou trocar por um mais barato, pera aí. O caixa a aguarda pacientemente. A sorte é que ela é a única cliente no momento, mas mesmo assim já era pra ele ter a despachado e voltado para leitura. Pronto. Peguei o menor. Quanto que tá aqui? Minha vista tá tão ruim... Deixa eu ver. Quatro e cinquenta, senhora. Certo, soma aí. A calculadora volta a tilintar e computar os valores. Deu treze reais. A senhora incrédula olha para o caixa e para os produtos com os óculos na ponta do nariz. Soma de novo, por favor. Senhora é o seguinte, é treze reais, eu não estou te roubando, você viu eu somar! Não não, soma de novo. O caixa xinga a velha em pensamento enquanto repete os valores em voz alta e digita devagar pra ela verificar o total da soma. Com os óculos ainda na ponta do nariz ela pega a calculadora na mão e examina o valor. Tá certo. O caixa suspira aliviado. Ela demora minutos contando as moedas. Diz que quer se livrar delas. Enquanto ele espera a fila na mercearia já cresceu. Sem paciência, o funcionário nem conta as moedas, as guarda e agradece a tartaruga quase que a expulsando.

Depois de atender todos os clientes o caixa volta a ler seu livro. A sua leitura é interrompida novamente por pequenos fregueses, quatro crianças. O tio, tem como trocar essa nota de dois reais. Trocar de bolso? Opa, troco sim. O caixa pega o dinheiro e guarda no bolso da calça. As crianças não entendem a piada e ficam encarando-o perdidas. Sem graça o caixa desiste da brincadeira e pega duas moedas de um real. Não tio, troca pra nós quatro aqui. Ele troca às duas moedas de um real por quatro moedas de cinquenta. Pronto, tá aí rapaz. Tchau. Não tio, queremos comprar. O garoto divide as moedas com os outros três pestinhas que estão com ele, cada um fica com uma moeda de cinquenta. O caixa não acredita que presenciou uma coisa dessas, mas tá certo, a molecada é muito nova ainda, de boa. Tio, quanto é esse chocolate? Um real. E esse outro? Dois reais. E esse salgadinho? Um e cinquenta. Rapaz, é o seguinte, você tem cinquenta centavos, só dá pra comprar bala, chiclete e pirulito, quais você quer? Não dá pra comprar salgadinho? Não. Mas a gente quer esse aqui ó? Quanto é? Dois reais... Se vocês juntarem as moedas dá pra comprar um pra todo mundo. Certo! O caixa murmura internamente, puta que pariu, não acredito numa coisa dessas. Com o salgadinho na mão a criançada se despede. Tchau tio. Tá, tchau, tchau.

Antes de terminar o expediente Jonathan ainda teve a sorte de atender o senhor Odair. Senhor Odair entra todo curvado nos seus passos de formiga. Boa tarde. Boa. Senhor Odair olha para o nada enquanto engole sua saliva e analisa a mercearia. Entra e começa a procurar algo, como se não tivesse em mente o que queria de antemão. Depois de uma eternidade andando em todos os corredores, pegando todos os produtos, dando suas pausas do nada, ele enfim, vai até Jonathan. Eu dei uma olhada aí e vi que vocês não têm. Então vai embora, né? Pensa o fatigado rapaz. Mas vou perguntar pra ter certeza. Vocês não têm... Pera aí, pera aí, deixa eu pegar. Jonathan coça a cabeça desesperado. Esse velho já devia estar morto que minha mãe me perdoe. O senhor senil volta com uma banana nas mãos. Eu queria banana maça. Essa aqui parece, mas não é, né?! Não, essa é prata. Olha aí, rapaz. Parece mas não é. E agora? Já procurei, procurei pelas vendas daqui e não achei em lugar nenhum. Foi mesmo? Foi. É, deixa eu ver essas bananas. Puta merda, puta merda. Ó rapaz, vou levar essas aqui. Mas essas tão bem maduras, senhor. Então, você faz um preço bom nelas não faz. Ah, meu Deus, leva de graça, só quero ficar livre de você o quanto antes. Bem, ela era quatro reais a dúzia... Dá pra fazer por dois e cinquenta. Mas tá tão madura! Só serve pra doce, bem, certo, vou levar, mas só pago dois reais. Tá bom véio, tá bom, só leva, leva. Tudo bem. É mesmo rapaz?! Que Deus derrame as suas bênçãos sobre você! Que tudo que você toque seja abençoado! Ah desgraçado, quero dinheiro, não essa conversa fiada. O garoto concorda. Amém. Amém.

Mais um dia de trabalho. O foda é que é segunda-feira ainda. Puta que pariu. Jonathan está sentado em frente de casa. Fuma um cigarro com o olhar fixo numa pomba esmagada no asfalto enquanto os fones de ouvido estouram os seus tímpanos com You Think I Ain't Worth a Dollar, But I Feel Like a Millionaire. 

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Bicharada

Lana É madrugada faz 11° no Grajaú não consigo dormir, mas no escuro permaneço ouvindo o silêncio dos cômodos da casa sob camadas e camadas de tecidos e algodão da touca, do travesseiro e dos cobertores ouço minha respiração & meus pensamentos ouço o pc que ficou ligado ouço os ratos andando sobre o foro &  Mia que para de se coçar para prestar  atenção nos ruídos do teto ouço o vento que balança a janela de leve & Dante que late lá fora, provavelmente  por causa dos ratos Então  de repente  sinto Laninha subindo em minhas pernas cobertas & se encolhendo entre elas como um caracol  – pelo visto não sou só eu acordado nesse frio

Tira-Teima

Ela diz que eu sou teimoso, mas eu insisto que não. Ela que é teimosa por insistir que eu sou teimoso. Entre teimas e teimas resolvi tirar um tira-teima: quando eu digo que a amo ela responde com um amo mais e quando ela diz que me ama eu respondo com um amo mais. Nessa teima sem fim nunca saberemos quem ama mais quem. Os dois são tão teimosos que provavelmente se amam em igual medida: a medida do amo mais. A grandeza é dada pelo amor, o nome da unidade é amo mais e seu símbolo é o infinito (∞) [1] . [1] A parte matemática provavelmente está errada, mas nesse caso ela só serve para ilustrar o quão infinito é o amor de dois teimosos.

Passeio

Chevette preto. Versão SL. Um ponto quatro. Rodas cromadas. Vidros sufilmados.  Passa a cento e vinte quilômetros por hora na Avenida Belmira Marin. O limite na avenida periférica é de sessenta. O clássico de 76 some bairro adentro. São duas e quinze da manhã. Milo, Cuca e Joey conversam na frente da casa de Macau. Contam vantagem do último rolê entre risadas e a fumaça dos cigarros e baseados. Mas se assustam quando um carro estranho na quebrada estaciona na frente deles. Imediatamente os vidros descem e a luz interna do carro acende. Não há ninguém no veículo. Ficam sinistramente cabreiros. O estofado de couro dos bancos fica mais brilhoso sob a luz branca do teto. Os amigos temerosos se levantam para entrar em casa quando o rádio do carro liga sozinho: “Vamo andar pelas ruas de São Paulo, por entre os carros de São Paulo, meu amor, vamos andar e passear” *. Eles se entreolham se perguntando se isso seria um convite. ...