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Lobo-Guará

Pernas compridas rodeiam uma cerca. A terra delimitada pelo conjunto formado pela madeira e arame farpado restringe o acesso que antes era livre. Hoje ele anda nostálgico em volta dessa terra que lhe foi tirada. A cada período curto de tempo o espaço que a cerca abarca aumenta. Ele se sente incapaz, parece que nada que possa fazer reverterá essa situação, muitos dos seus já tentaram, mas em vão, foram expulsos ou mortos da terra que hoje não é mais de bem comum, mas propriedade de alguns privilegiados. As suas grandes orelhas não captam nem um leve ruído de alteração nos ventos de seu destino. O seu olfato não sente o cheiro da mudança. O seu pelo vermelho está coberto de pó. Ele é um animal em extinção. Aguardando o seu lugar empalhado em algum museu natural ou apodrecendo debaixo da terra maculada com o sangue de seus irmãos. O seu corpo esguio a cada dia definha mais e mais por causa da angústia e do desespero que lhe assolam. A depressão lhe tirou a vontade de caçar, de comer, de viver, de lutar. A sua carcaça vaga sob a superfície de uma terra estranha, diferente daquilo que era, e onde não há mais lugar para ele. O contato com seres parecidos, mas que se sentem diferentes lhe trouxe doenças, a intolerância e o preconceito de outros lhe trouxe morte e a devastação de sua casa deixou-a infrutífera e escassa. Ele desistiu da guerra que foi obrigado a travar. Vaga solitário no seu ritual da morte. Ritual que é interrompido por um tiro de espingarda do dono da propriedade. Ao se aproximar do animal abatido este se transforma num índio. Ele dá seu último suspiro e se desmaterializa deste mundo para sempre.

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Bicharada

Lana É madrugada faz 11° no Grajaú não consigo dormir, mas no escuro permaneço ouvindo o silêncio dos cômodos da casa sob camadas e camadas de tecidos e algodão da touca, do travesseiro e dos cobertores ouço minha respiração & meus pensamentos ouço o pc que ficou ligado ouço os ratos andando sobre o foro &  Mia que para de se coçar para prestar  atenção nos ruídos do teto ouço o vento que balança a janela de leve & Dante que late lá fora, provavelmente  por causa dos ratos Então  de repente  sinto Laninha subindo em minhas pernas cobertas & se encolhendo entre elas como um caracol  – pelo visto não sou só eu acordado nesse frio

Tira-Teima

Ela diz que eu sou teimoso, mas eu insisto que não. Ela que é teimosa por insistir que eu sou teimoso. Entre teimas e teimas resolvi tirar um tira-teima: quando eu digo que a amo ela responde com um amo mais e quando ela diz que me ama eu respondo com um amo mais. Nessa teima sem fim nunca saberemos quem ama mais quem. Os dois são tão teimosos que provavelmente se amam em igual medida: a medida do amo mais. A grandeza é dada pelo amor, o nome da unidade é amo mais e seu símbolo é o infinito (∞) [1] . [1] A parte matemática provavelmente está errada, mas nesse caso ela só serve para ilustrar o quão infinito é o amor de dois teimosos.

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