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O lugar é a gente


Felipe desce o escadão do Carioba. O prédio escolar está vazio e escuro. Férias. Na sua frente dois caras carregam uma geladeira num carrinho de mão, enquanto um guia o carrinho, o outro segura o eletrodoméstico evitando que ele não tombe para o lado. Um som familiar vem se aproximando lá de trás:

vamos as atividades do dia. lavar os corpos. contar os corpos. e sorrir a essa morna rebeldia.

Um cara de camiseta e calça preta, vans quadriculado, segurando uma sacola numa mão e uma garrafa de água pela metade na outra passa por ele e pelos homens que carregam a mudança cantando:

só os louco, só os louco, só os louco.

Cumprimenta os trabalhadores e segue fazendo a trilha sonora de sua volta pra casa. Trilha que vai se misturando aos outros ruídos da vila. O fim do escadão dá numa praça improvisada pelos moradores onde uma árvore se sobressai aos vasos de plantas feitos com pneus. Uma molecada aparece do nada. Felizes. Um deles carrega algum objeto que pisca sem parar. Sorrisos inocentes estampam seus rostos infantis.

Tem preguiça de seguir o caminho pela íngreme doze e decide pegar o caminho da favelinha que vem se formando às margens da represa. Na época da escola o caminho de rato que pegava era rodeado pelas águas da Billings e por uma chácara, em certas épocas do ano corria dos morcegos que se abrigavam nas árvores e ria com o grito das meninas que se assustavam com os notívagos. Agora o caminho é rodeado por casas tanto de um lado quanto de outro.

É a perfeita descrição das favelas dos livros escolares de geografia. Construções levantadas com alvenaria e madeira. Parece que ele entrou noutra realidade já quase esquecida, mas jamais desconhecida. A comunidade onde mora já está num processo de urbanização um pouco mais avançado, essa pequena rua que se formou lembra o início de tudo, quando se mudou com os pais para um lugar marcado pela precariedade, mas com vontade de sorrir com dignidade.

Algumas casas do lado da represa estão meio que tomadas pelo mato que cresce, algumas estão praticamente dentro d’água, o que impressiona. Muitas dessas casas estão desocupadas. O outro lado é formado por uma mal-ajambrada configuração, ele não sabe onde começa e nem onde termina a casa de um e a casa de outro. Somado aos barracos que também se espalham pelo espaço.

Caminhando no chão de barro passa por uma moça com vestido florido e pássaros tatuados nas costas que é acompanhada por um rapazinho sem camiseta, mas de short e chinelo. Ri. Segue nostálgico. A sua infância o rodeia por todos os lados e um sentimento de algo perdido se abriga no seu peito. Uma certeza de onde veio acalenta seu coração e uma esperança de melhora lhe encoraja a continuar, às vezes com a chama do amor e às vezes com a fria solidão, mas nunca com a morna indiferença.

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