Chester é um cão cheio de vida. A sua vida é tanta que ela transborda. É
hiperativo: não há lugar onde ele não suba, não há coisa que ele não destrua,
não há momento em que ele sossegue. Arthur se cansou de comprar vasilhas para
pôr ração e água para o seu vira lata, ele come todas as vasilhas possíveis,
ainda se lembra da surpresa ao colocar água na nova vasilha de alumínio e se
deparar com a água que era filtrada por furos no seu fundo, como uma espécie de
regador. Uma faixa preta risca as costas de Chester, do rabo até ao pescoço,
aonde vai se misturando, criando um degradê com o seu pelo marrom. As suas
pernas e patas também são manchadas, mas de um branco que constantemente fica
sujo devido a sua inquietação.
Quando Arthur está em casa Chester fica com ele no quarto. Quando não
está aprontando dorme tranquilo em sua cama ao lado da cama do dono. Arthur não
se atrasa ao trabalho graças ao cachorro que lhe acorda com seus cheiros e
lambidas, e também não consegue acordar mais tarde nas folgas pelo mesmo
motivo. Durante o dia Chester fica solto na laje de casa. Sônia não tem
paciência com o cachorro descontrolado do filho que passa o dia cheirando aqui
e ali, puxando uma coisa aqui e outra ali, mastigando qualquer coisa que caiba
em sua boca. Finda as obras de um novo cômodo em casa, Rogério colocou os
pontaletes em cima da laje onde o cão passa as tardes. Não pensou que elas
funcionariam como escada para o cachorro do filho que começou a ter acesso à
laje do vizinho.
Com as festas de fim de ano o trabalho de Arthur está cada dia mais
puxado e cansativo. O shopping anda abarrotado de clientes em sua maioria malas
e exigentes. O bom disso é que todos os bichos de pelúcia da loja onde trabalha
foram comprados para perpetuar a magia do natal. Depois de encerrar as
atividades do dia ele fica com Pamela até o fechamento do caixa. Chega morto em
casa por volta da meia noite e é recebido por Chester com um sapato na boca. O
sapato não é dele e nem de seu pai, mas ele não percebe. E rapaz, me dá isso
aqui. Faz carinho em sua cabeça e o coloca para dentro do seu quarto. Capota na
cama e entra em coma enquanto Chester ainda fuça nas compras que trouxe e
deixou jogado pelo chão. Depois de cheirar, morder e babar algumas roupas e
presentes de natal, ele enfim é vencido pelo peso das suas pálpebras.
Arthur está de folga e toma café na mesa da cozinha. Seu cabelo está
bagunçado e olheiras fundas rodeiam os seus olhos. São oito horas e como sempre
Chester lhe acordou cedo demais no seu dia de folga. A campainha é acompanhada
por latidos fortes que o levantam da mesa. Quieto, negão. Ele passa pelo
quintal e abre o portão. Fala rapaz e aí? Tudo bem? Tudo sim seu Erisvaldo. Meu
pai não está... Não, não vim falar com seu pai. Viu, seu cachorro passou a
tarde toda correndo pela minha laje. Eu trabalho a noite e não consegui dormir.
O senhor Erisvaldo, desculpa. Não sei como ele conseguiu subir para a laje do
senhor. Foi pelos pontaletes. Certo, eu vou dar um jeito. Olha, se você não der
um jeito eu dou, ficou claro? Além de não dormir os meus sapatos sumiram. Não,
fica sossegado que eu vou tirar aqueles pontaletes de lá. Boa tarde. Boa.
Arthur entra soturno. Lembra que ao chegar Chester estava com um sapato
entre os dentes. Sobe na laje e muda os pontaletes de lugar. Mas estranhamente
não acha os sapatos. Deixa Chester longe da laje por hoje, passa o dia com ele
dentro de casa. Terminando o serviço toma um banho. Seus pais foram para casa
de sua avó e só voltam amanhã. Prepara um macarrão para comer e põe ração e
água para o pulguento. Aproveita o resto do dia assistindo séries no Netflix.
Termina a última temporada de Mad Men e começa Sherlock. No intervalo entre as
duas Chester começa a latir, ele o leva pra fora para evacuar. Voltam para o
quarto e recomeçam Sherlock.
Chester devora sua ração e Arthur come um pacote de biscoitos. O sono
começa a bater nele durante o segundo episódio e ele resolve colocar Arrested
Development pra pegar no sono. Ele é despertado do cochilo pelos rosnados e
latidos de Chester. Se aquieta rapaz! Em vão, o cachorro late e rosna com mais
ferocidade. Inquieto, vai do quarto para a cozinha e continua em seu estado de
alerta em frente à porta da sala. Arthur decide levantar-se e dar uma olhada no
quintal. Ao passar pela sala levanta a árvore de natal que o cachorro derrubou
no alvoroço. Abre a porta e Chester rapidamente sobe as escadas para laje,
Arthur o acompanha e se assusta com vulto que pula da sua laje para a laje do
vizinho.
Ele fica sem reação, petrificado e com a respiração pesada. Já é madrugada
e ele resolve não fazer nada. Volta para casa assustado tentando acalmar o cão
e a si mesmo. Não dorme direito, fica num estado de sono e vigilância. Quando
acorda, Chester sempre levanta a cabeça e o encara com a língua para fora.
Quando enfim adormece já é perto do amanhecer, acorda atrasado para o trabalho,
estranhamente o seu vira lata não o acordou. Solta Chester pela laje e corre
para o trabalho. É quase uma hora e ele deve chegar ao trabalho às duas. Pega o
primeiro ônibus para o shopping Interlagos. Se espreme na lotação entupida.
Chega ao trabalho suado e amassado por volta das três e Pamela
prontamente lhe avisa que seus pais ligaram. Não entende porque não ligaram
para o seu celular, mas ao pegar o aparelho nota três ligações perdidas de seu
pai. Retorna a ligação. Fala pai, que foi? É o Chester. Como assim? Ele está
deitado e tremendo. Mas como... Ele tava bem... Instantaneamente Arthur se
lembra das palavras do vizinho. Ele quer ir embora, mas o pai o tranquiliza.
Cumpra seu expediente.
Infelizmente ele não consegue se concentrar no serviço e volta para
casa. Liga para o pai e a mãe, mas eles não atendem. Chegando em casa repara no
cachorro deitado no chão do quintal. Duro e sem vida. Ele chora acariciando sua
barriga marrom machada de preto. Ele limpa as lágrimas com a costa da mão e
sobe na laje, pega uma barra de ferro no meio da parafernália de seu pai. Seu
Erisvaldo está na cozinha ajudando a mulher a preparar a ceia de natal. Os dois
filhos estão para chegar e a campainha soa. Vai abrir o portão e é surpreendido
por um golpe na cabeça e cai. Arthur reúne todas as suas forças e dá uma
segunda tacada nas têmporas do homem. Seu Erisvaldo está desacordado e uma
pequena poça de sangue se forma em volta da sua cabeça.
Arthur pega o carrinho de mão de seu pai e uma pá. Coloca Chester no
carrinho e o leva até um terreno abandonado. Ele revolve a terra enquanto o sol
se põe. O céu está machado pelas cores do entardecer criando um degradê no meio
das nuvens. Ele termina a cova assim que o manto escuro da noite cobre o céu.
Ele envolve Chester num manto branco e coloca-o com cuidado na cova de uns três
palmos que cavou. Devolve a terra removida para seu lugar e volta para casa
ansiando que o filho da puta que matou seu cachorro também tenha morrido pra
lhe dar o mesmo destino.
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