Pular para o conteúdo principal

Pães e doces, sonhos


Existe um horário depois do almoço, entre o meio dia e as quatro horas da tarde, que foi feito especialmente para dormir. Principalmente nos dias frios de São Paulo, com o céu cinza e seus habitantes entocados. Mas como para muitos aqui não é São Paulo e sim Grajaú, lá está ele sentado na poltrona do caixa de sua pequena mercearia, cochilando enquanto espera pelos clientes, assento inclinado, boca aberta, a sorte é que hoje não tem moscas por conta do frio, se não já teria engolido umas cinco pelo menos. Acorda no sobressalto com os vizinhos lhe chamando devido as vacas que se alimentam com as frutas e verduras das mesas em frente ao comércio. Entre arroios e leves vassouradas as enxota dali com as barrigas cheias. Elas calmamente viram as costas com seu passo manso e seu ruminar que não tem pressa de acabar. Ele senta novamente aliviado, pois o prejuízo não foi lá essas coisas. Liga a televisão e zapeia pelos canais. Programas e programas de variedades e fofocas, o horário vespertino definitivamente foi feito para dormir. Desliga o televisor. Pega o celular para checar as atualizações das redes sociais. Eleições 2018. Vídeo de Gatinho. Alckmin e o Centrão. Ciro ficou na mão. Lula Livre. Meme engraçadinho. É melhor Jair se acostumando. Foto de um amigo qualquer. Curtir ou amei? Amei. Meme político. Outro. Manuela D’Ávila. Curtir o compartilhamento do novo clipe de Father John Misty. Lula ladrão roubou meu coração. Boulos. É só política. Ele tá cansado. Tenta tirar umas selfies para compartilhar junto com um trecho de algum rap do Djonga, mas não gosta dele em nenhuma das fotos e decide não postar nada hoje. Não é de esquerda, não é de direita, é alheio a tudo isso, apolítico ele pensa, quem sabe alienado para os militantes engajados, na verdade, ele só não consegue ver a política como solução, ela deveria ser, mas, mas, mas, tem tantos mas nessa história que ele prefere se levantar e checar o tamanho dos pães. Lembra da foto de Rafael Braga junto ao pixo no muro da instituição onde cumpria pena, "você só olha da esquerda para a direita, o estado te esmaga de cima para baixo", foto que lhe rendeu dez dias na solitária. No armário os pães ainda estão pequenos, o frio os pegou de surpresa, a quantidade de fermento foi pouca. Dá uma aquecida no forno e os troca de lugar para quem sabe o quentinho ajudar na fermentação da massa. Liga o rádio da televisão e bota numa estação de música sertaneja. “Solidão é companheira nesse risca faca”. Pensa enquanto trabalha e trabalha enquanto pensa. “Enquanto cê não volta eu tô largado às traças”. Varre os corredores do estabelecimento, “se todo mundo só tá atrás dos seus interesses”, passa o pano no chão, “eu também vou atrás dos meus, mas ora”, tira o pó das prateleiras, “é isso, bora no menos pior para a população”, repõe as mercadorias, “o foda é que quando a gente menos espera esses caras nos fodem mais uma vez”, tira as frutas estragadas para as demais não apodrecerem também, “na política, como em tudo na vida, seria mais fácil se pudéssemos identificar os podres antes que eles tivessem a mínima chance de estragarem os bons”, leva as frutas podres para o lixo, “mas acho que temos que continuar tentando, apesar de tudo, acho, não sei”. Volta para a sua poltrona. Se espreguiça e se joga inclinando-a para trás. Suas rodinhas escorregam e ele estatela no chão, “é, não dá pra confiar em nada, tem que sempre ficar atento”. Aproveita o levantar da queda para averiguar os pães novamente. Não estão no tamanho ideal, mas a comunidade precisa de pão, é isso. Os tira e liga o forno para aquecer até a temperatura exata para assa-los. Joga tetris enquanto espera o apito do forno. Nesse ínterim, uma senhora com roupas de algodão já desgastadas, um moletom, uma blusa de frio, uma touca e luvas com as pontas dos dedos para fora, com uma aparência cansada tanto nos olhos quanto no corpo, interrompe o seu novo score, pede humildemente um pouco de pão dormido. Na mesma hora do pedido o forno apita, ele pede para ela esperar, pega uma caixa de papelão vazia, usada para transportar ovos, e deposita nelas cinquenta pães quentinhos. Observa a senhora subindo a ladeira abraçada com a caixa antes de retornar para dentro e colocar os outros cinquenta pães no cesto para a venda. Impotente se senta novamente na poltrona e espera pelos clientes e espera pela melhora e espera pela esperança e espera pela redenção e espera por qualquer coisa que mude essa triste realidade. “Maldito sentimento que nunca se acaba”.    

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Bicharada

Lana É madrugada faz 11° no Grajaú não consigo dormir, mas no escuro permaneço ouvindo o silêncio dos cômodos da casa sob camadas e camadas de tecidos e algodão da touca, do travesseiro e dos cobertores ouço minha respiração & meus pensamentos ouço o pc que ficou ligado ouço os ratos andando sobre o foro &  Mia que para de se coçar para prestar  atenção nos ruídos do teto ouço o vento que balança a janela de leve & Dante que late lá fora, provavelmente  por causa dos ratos Então  de repente  sinto Laninha subindo em minhas pernas cobertas & se encolhendo entre elas como um caracol  – pelo visto não sou só eu acordado nesse frio

Tira-Teima

Ela diz que eu sou teimoso, mas eu insisto que não. Ela que é teimosa por insistir que eu sou teimoso. Entre teimas e teimas resolvi tirar um tira-teima: quando eu digo que a amo ela responde com um amo mais e quando ela diz que me ama eu respondo com um amo mais. Nessa teima sem fim nunca saberemos quem ama mais quem. Os dois são tão teimosos que provavelmente se amam em igual medida: a medida do amo mais. A grandeza é dada pelo amor, o nome da unidade é amo mais e seu símbolo é o infinito (∞) [1] . [1] A parte matemática provavelmente está errada, mas nesse caso ela só serve para ilustrar o quão infinito é o amor de dois teimosos.

Passeio

Chevette preto. Versão SL. Um ponto quatro. Rodas cromadas. Vidros sufilmados.  Passa a cento e vinte quilômetros por hora na Avenida Belmira Marin. O limite na avenida periférica é de sessenta. O clássico de 76 some bairro adentro. São duas e quinze da manhã. Milo, Cuca e Joey conversam na frente da casa de Macau. Contam vantagem do último rolê entre risadas e a fumaça dos cigarros e baseados. Mas se assustam quando um carro estranho na quebrada estaciona na frente deles. Imediatamente os vidros descem e a luz interna do carro acende. Não há ninguém no veículo. Ficam sinistramente cabreiros. O estofado de couro dos bancos fica mais brilhoso sob a luz branca do teto. Os amigos temerosos se levantam para entrar em casa quando o rádio do carro liga sozinho: “Vamo andar pelas ruas de São Paulo, por entre os carros de São Paulo, meu amor, vamos andar e passear” *. Eles se entreolham se perguntando se isso seria um convite. ...